“Tolerância Zero?”

Em carta divulgada pelo Vaticano no início de 2017, o Papa Francisco disse aos bispos que eles devem aderir à política de tolerância zero para clérigos que abusem sexualmente de crianças e pedir perdão por “um pecado que envergonha a todos nós”. E a 8 de Julho do corrente ano, em entrevista à agência Reuters, o Papa reafirmou que essa política de “tolerância zero” para casos de abusos é “irreversível”.

A 5 de Outubro último, no “Diário de Notícias” lisboeta, a jornalista Fernanda Câncio publicou um texto de opinião com o sugestivo título “A Igreja é corrupta mas o Papa é santo?”, escrevendo: ”O caso Belo é só mais uma evidência do pouco que mudou na forma como a Igreja Católica lida com as denúncias (e até as evidências) de abusos. E deve levar-nos a perguntar se é possível que tudo se passe a despeito do monarca absoluto que é Francisco”. E prossegue: “Um Bispo Nobel da Paz que abandona o seu país, de cuja hierarquia católica é o mais alto dignitário, quando esse país, finalmente, e depois de uma longa luta na qual o clérigo teve um papel proeminente, conquista a independência. Alega «problemas de saúde», desaparecendo da esfera pública e acabando por se refugiar em Portugal.

Como é que isto não suscitou perguntas? Ou será que se tratava na verdade de se saberem as respostas e não se querer conspurcar com elas a recém-nascida nação e, evidentemente, a sacrossanta Igreja Católica, numa altura em que – estava-se em 2002 – o Boston Globe publicava a 1ª grande investigação jornalística sobre abuso sexual por padres e seu encobrimento sistémico?

Tendo a crer na 2ª hipótese. Muita gente, na Igreja Católica e fora dela, sabia das suspeitas (ou mesmo, quiçá, de evidências) relacionadas com Ximenes Belo, e fez-se um pacto de silêncio – tanto mais espantoso quando o exílio do clérigo coincidiu com o rebentar do 2º grande escândalo português de abuso de menores, o caso Casa Pia (sendo o 1º o dos Ballet Rose, ocorrido durante a ditadura).

E porque creio nisso? Depois da revelação, na semana passada, pela revista holandesa De Green Amsterdammer, das acusações de abuso sexual por parte de duas alegadas vítimas do ainda bispo, e da admissão do departamento do Vaticano que investiga e sanciona esses crimes de que teria proibido – em 2020, note-se, ou seja 18 anos depois do «exílio» – Belo de contactar com menores e de voltar a Dili, falo com pessoas que conhecem bem o país, e que me garantiram que se tratava de um segredo de polichinelo.

O que isso significa é que não se trata apenas («apenas») de o Vaticano saber e calar, e de os responsáveis da Igreja Católica portuguesa saberem e calarem, muito mais gente, em Timor e Portugal, soube e calou. E se na hierarquia católica o encobrimento e o silenciamento destes casos são, como está sobejamente provado, o procedimento normal, o silêncio em relação ao afinal pelos vistos tão conhecido caso Ximenes demonstra que a tão alardeada «preocupação com as vítimas» também tem dias nos meios políticos e jornalísticos.

De resto, é raríssimo, mesmo nesta altura dos acontecimentos, que as exigências de esclarecimento e responsabilização vão além de um certo ponto: ainda há, em geral um culto do «respeito» e até de «reverência» pela instituição Igreja Católica e pelos seus hierarcas, como se a ideia de «sagrado» se impusesse inclusive nos meios não católicos”.

A comprovar essa leitura, a redactora principal do matutino de Lisboa acrescenta: “Até quando se vêem cardeais acusados e condenados por encobrimento,  como sucedeu em França, a tendência é para continuar a falar do assunto como se se tratasse de falhas individuais, nem o facto de até o Papa Bento XVI ter sido este ano, no contexto de uma investigação independente comissionada na Alemanha pela hierarquia local, acusado de, enquanto cardeal, Ratzinger, ter «olhado para outro lado», no que respeita a 4 casos de abuso, resulta numa outra abordagem. É como se quisesse muito acreditar que, a despeito de todas as evidências, a Igreja Católica é uma instituição «para o bem».

Para isso muito contribui o discurso e a postura do actual Papa, claramente um génio de relações públicas que não se cansa de garantir que com ele tudo mudou, e que agora, sob a sua batuta, tudo será investigado, a verdade será exposta e as vítimas reconhecidas e, dentro do possível, compensadas.

Como se constata no caso Ximenes Belo, nada disso sucede. Se o próprio Vaticano admite que o sancionou em relação com denúncias de abuso sexual, onde está o reconhecimento das vítimas? Onde está a sua compensação? Onde está – ao menos – um pedido de perdão? Por outro lado, se o Vaticano considera que Ximenes Belo não pode voltar a Timor nem contactar com menores, quem é que sabe disso? Como é que o podem garantir se é suposto ser segredo?

E alguém pode acreditar que um caso com esta gravidade e alto perfil – o de um clérigo Nobel da Paz -, não chegou aos ouvidos do actual Papa? Como se justifica que tenha sido preciso um artigo jornalístico denunciar as acusações para que se fale disto? É essa atenção e justiça que Francisco tem para oferecer às vítimas?”

“Não admira – prossegue Fernanda Câncio – que os primeiros representantes das vítimas escolhidos para fazer parte da Comissão Pontifícia de Protecção de Menores, por Francisco criada e nomeada em 2014 com o objectivo de aconselhar o Papa na questão dos abusos sexuais, tenham saído passado pouco tempo. A 2ª a bater com a porta, em 2017, foi a irlandesa Marie Collins, que em 2018, depois de um encontro com o Papa aquando da visita deste à Irlanda, escreveu um artigo a dar conta do seu desapontamento.

«Francisco disse-me que não via necessidade da existência de uma instância central de responsabilização (refere-se ao tribunal central, para julgamento de casos de encobrimento, proposto pela Comissão ao Papa e que nunca foi criado). Acha que há responsabilização. Os bispos em relação aos quais há suspeitas de encobrimento são investigados em processos internos e ele afasta-os se considera que são culpados (…) Mas o meu ponto é que não se diz às pessoas que os bispos responsáveis por encobrimento são afastados. Permitem-lhes que resignem e vão à vida deles. Nada é transparente. Ele admitiu que tinha de haver mais transparência». Collins disse ainda estar muito desapontada com o facto de o Papa afirmar que estava contente com os processos locais (nos países) e que não sentia que existisse «resistência».

O que leva a jornalista do “DN” de Lisboa a concluir: “Quatro anos depois, o «mais transparência» de Francisco está à vista. No caso Ximenes como nas Concordatas que o governo do qual é monarca absoluto assinou desde que subiu ao trono, uma delas, por coincidência, com Timor. Aí se pode apreciar como se criou, no caso da República Centro-Africana, um «foro privilegiado» para os bispos, e se colocaram em vários países, incluindo Angola, os arquivos e registos fora do alcance das autoridades. Nada garante «mais transparência», não é?

Do mesmo modo, nada demonstra mais a determinação de fazer justiça e assumir responsabilidades que as disposições, insertas nas Concordatas com Angola e Burkina Faso (as mais recentes, de 2019), de que a responsabilidade civil e criminal por delitos cometidos por eclesiásticos é «exclusivamente pessoal» e apenas «essas pessoas físicas responderão com os seus bens pessoais aos danos materiais, imateriais ou morais ligados ao delito civil ou ao crime»”.

Este desencanto, desapontamento atinge como já se percebeu sectores da própria Igreja. Disso mesmo dava mostras, a 18 de Outubro p.p., o também jornalista Jorge Wemans no “7 Margens – jornal digital de religiões, espiritualidades e culturas”, num artigo com o título “Vaticano e Francisco alvos de fortes críticas”.

Wemans, católico assumido, cita dois textos publicados respectivamente no jornal católico “La Croix” e no norte-americano “Washington Post”. “Caso Santier: choque e desgosto” é o título do editorial do “La Croix”, enquanto o “Washington Post” titula “A má gestão do Vaticano de casos de abuso de alto nível aprofunda a sua principal crise”. “Em ambos os textos a mesma acusação: em alguns casos de abusos sexuais o Vaticano não está a proceder conforme prometera e isso descredibiliza tudo quanto tem dito e feito. Visado nº 1: o Papa Francisco.

De um e do outro lado do Atlântico os exemplos poderiam multiplicar-se. Quer na imprensa laica, quer na de origem católica. O tema é sempre o mesmo: casos envolvendo abusos praticados por bispos que foram tratados por Roma de forma sigilosa, ou negligente, e que por isso não promoveram a transparência e a reparação defendidas por Francisco. E o caso do bispo Ximenes Belo voltou, de novo, a ser tema.

O «choque e desgosto» francês resulta de se ter sabido, através do semanário “Famille Chrétienne” de 14 de Outubro que o bispo de Créteil (subúrbios de Paris) Michel Santier, que invocara «razões pessoais e de saúde»  para se retirar em janeiro de 2021, tinha afinal pedido a sua demissão um ano antes, por reconhecer ter abusado de dois jovens adultos no início dos anos 90. O pedido de demissão foi aceite por Francisco em Junho de 2020, mas nunca foram feitas quaisquer referências a abusos sexuais, apesar de em Outubro de 2021, a então Congregação para a Doutrina da Fé lhe ter imposto medidas coercivas, obrigando-o a um «ministério restrito» e a «levar uma vida de oração e penitência» numa comunidade religiosa. É contra este silêncio que o editorial do “La Croix” se manifesta: «Infelizmente, vemos claramente que a instituição, por cobardia, legalismo ou cálculo, mais uma vez cometeu o erro de silenciar o escândalo (…) Definitivamente é necessário ter um coração forte para não desesperarmos na Igreja, quando ela apresenta tal rosto».

O mesmo tom está presente no editorial «Caso Santier: o silêncio é uma quebra de confiança», da edição online de 18 de Outubro do semanário católico “La Vie”. Nenhuma das publicações aceita como desculpa o facto de os dois jovens serem adultos à data dos acontecimentos (década de 1990), recusarem ser identificados publicamente ou de não terem sido tocados pelo então padre Michel Santier quando os forçou a despirem-se diante dele como penitência, depois de os ouvir em confissão”.

Por sua vez o artigo publicado no “Washington Post” e assinado por dois jornalistas, um dos quais chefe da delegação do jornal em Roma, tem como ponto de partida os «casos» do cardeal Ouellet e do bispo Ximenes Belo, no qual os activistas anti-abusos contactados pelo jornal garantem que «ambos reflectem um padrão de sigilo e defensivo» e mostram que «a Igreja ainda está a cerrar fileiras para proteger a reputação de prelados poderosos».

No caso do cardeal canadiano Marc Ouellet, o Vaticano analisou as acusações – tocar indevidamente numa funcionária – mas delegou a investigação num padre que o conhece bem que determinou «não existirem motivos para criticar o seu comportamento». «Uma conclusão -escreve o “Washington Post” – que o advogado do acusador diz ser discutível, dado o possível conflito de interesses».

Para sublinhar a perda de credibilidade que estes casos geram, os jornalistas citam activistas para quem o caso do cardeal Ouellet «evidencia a necessidade de peritos externos investigarem alegações de má conduta». David Deane, professor associado de teologia da Atlantic School of Theology, na Nova Escócia, disse ao “Washington Post” que «os membros do clero geralmente cerram fileiras e não podem ser fiáveis para se investigarem uns aos outros. Ter o clero a dirigir a investigação é um problema real. É um assunto problemático». «Enquanto isso acontecer, será muito difícil a Igreja ser transparente e ganhar a confiança pública no processo».

Os jornalistas recordam que «Ouellet, de 78 anos, negou as acusações de toque inapropriado», mas não deixam de sublinhar que «é amplamente considerado como uma das figuras mais importantes da Cúria Romana» enquanto prefeito do Dicastério para os Bispos e que o Papa Francisco «permitiu que ele permanecesse no cargo muito além do mandato normal de 5 anos». Sobre as relações do cardeal com Francisco acrescentam que eles mantêm «encontros quase todas as semanas».

No La Croix International, Robert Mickens – analista de assuntos do Vaticano para a BBC e editor da Global Prise, uma revista online lançada pela Union of Catholic Asian News (UCAN) – é também muito crítico sobre o tema: «É muito decepcionante  ter de dizer isto, mas tenho de dar este conselho a qualquer pessoa que tenha sido abusada sexualmente por um padre ou bispo católico: se a ofensa ainda não tiver prescrito, não a denuncie – em circunstância alguma – às autoridades eclesiásticas, especialmente às do Vaticano» “.

Cristina Sanz, teóloga num texto publicado inicialmente na revista espanhola “Vida Nueva” e reproduzido no “7 Margens” com o título “A origem distante e próxima dos abusos na Igreja” adianta que todos os abusos «têm uma origem comum: o abuso de poder», acrescentando «a partir da instalação do clericalismo apareceu o abuso de poder. O clericalismo é a perversão de uma vocação chamada a servir os mais fracos, pobres, necessitados, inocentes».

 

* por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Post-Scriptum: 1) Alucinado: A pretexto da situação de insegurança na cidade o edil funchalense advoga que o exército passe a patrulhar as ruas. Uma espécie de estado de sítio permanente. Quem sabe, um novo cartaz turístico…

2) Contra-ciclo: à revelia do que é actualmente a política de mobilidade nas diferentes cidades europeias, a autarquia funchalense quer edificar um parque de estacionamento em pleno coração da cidade. Viva o «pugresso»!

3) A falar só: no monólogo que a RTP-M quinzenalmente lhe concede, o antigo inquilino da Quinta das Angústias vai perorando em redor das suas obsessões: o “deve e haver dos 600 anos” e o “clube único”. Mas ninguém lhe presta atenção. Que ingratidão! Imperdoável.

4) Às avessas: A pobreza existente na Região nunca foi assumida como uma realidade preocupante pelos sucessivos governos regionais. No tempo do antigo caudilho chegou-se ao desplante de considerá-la residual. Com este histórico não surpreende que numa semana o governo divulgue uma estratégia de luta contra a pobreza e posteriormente anuncie a realização de um estudo. Ou seja, é como começar a construção de uma casa pelo telhado.

5) Incómodo: O trumpista mor cá do sítio insurgiu-se contra as críticas que vêm sendo dirigidas contra a Igreja Católica pela forma como tem lidado com a prática de abusos sexuais no seu seio. De quem fez coro com o antigo bispo emérito em defesa do sinistro personagem que dava pelo nome de “padre” Frederico percebe-se o incómodo.