“Os “instrangeiros”, considera, “são as multidões deixadas à margem do chamado desenvolvimento, os excluídos dos benefícios da modernização. Os “instrangeiros”, dentro do próprio país, na sua região, vivem como se estivessem em terra hostil, tratados como pessoas descartáveis, desnecessárias e até indesejáveis. No livro, os “instrangeiros” são caracterizados como «uma espécie de sub-humanidade miserável»”.
“Os instrangeiros”, como problema humano e social, são os despossuídos. São consequência da ampliação do fosso que separa os pobres dos ricos”, sentencia.
“Ora, se esta realidade se reportava à Madeira de 2005, hoje tem maior actualidade. Agora, a Madeira, em 2022, regista a maior desigualdade do País. Nos últimos dias foram apresentados os dados estatísticos, pela Direcção Regional de Estatística da Madeira, que colocam a Região Autónoma da Madeira no topo da desigualdade de rendimentos em Portugal. Na Madeira, os rendimentos dos 20% mais ricos são três vezes superiores aos rendimentos dos 20% mais pobres, com uma desigualdade mais agravada do que no resto do País”, aponta.
A situação de sem-abrigo no Funchal atingiu uma expressão inédita nos últimos anos. A que se deve esse agravamento do número de pessoas sem tecto? Persiste um “fosso” entre ricos e pobres, como dizia em 2005 no seu livro?, perguntámos.
Edgar Silva é taxativo: com os dados mencionados, conclui que “não só persiste o modelo de concentração da riqueza nuns poucos, como, em contraste com os oligarcas destas ilhas, cresce a multidão dos explorados, «serviçais de um festim, para o qual muito poucos foram efectivamente convidados». Na Madeira e no Porto Santo só aumentou a profunda separação social”. “Como alguém disse recentemente, vemos “a ilha resort” para uns, em contraposição à experimentada “ilha gueto”, para onde tanta gente é remetida”, acusa.
De que forma estará também o fenómeno dos sem-abrigo ligado à actual situação da Madeira, enquanto região do país com pessoas em maior risco de pobreza?, quis saber o FN.
“Sim, perdura no tempo a pobreza como fenómeno estrutural da sociedade portuguesa. Existem processos que decorrem de nexos causais de alcance nacional, aos quais se somam factores regionais. Estão cristalizadas causas estruturais como a rigidez dos baixos rendimentos derivados do trabalho, das baixas pensões e reformas, as carências habitacionais, o perfil das qualificações, as assimetrias territoriais, os elos do ciclo intergeracional da pobreza, as erradas prioridades do investimento público”, explica o nosso interlocutor.
“No entanto”, refere ainda, “acrescem novos factores de agravamento da situação económica e de crise social. Para além daqueles que já vivem na pobreza, para além daquele “quarto mundo”, a par das vítimas da grande e da extrema pobreza, hoje, os não pobres ou os “ainda-não-pobres” sentem ameaças muito concretas. Existem novos mecanismos de exclusão social e de risco de pobreza, sobretudo, para aquelas pessoas que vivem do rendimento do seu trabalho, os micro e pequenos empresários, milhares de reformados e pensionistas, perante o actual assalto aos rendimentos através da carestia de vida e da especulação que por aí campeia, devido ao aumento do custo de bens e serviços básicos, com o aumento das taxas de juro, com as acrescidas dificuldades no acesso à habitação, para milhares de pessoas a separação social já habita em muitos novos lugares”.
As causas da pobreza na Madeira serão sensivelmente as mesmas hoje que eram no passado, ou há novos factores em jogo? Como a inflação, o agravamento da crise económica num cenário pós-Covid-19 e de guerra na Ucrânia?
“O Covid-19, a guerra na Ucrânia, a crise profunda do sistema capitalista, são factores que fazem com que, para muita outra gente de entre os “ainda-não-pobres”, os riscos de pobreza e de exclusão social estejam a crescer assustadoramente”, adverte este político e autor.
Infelizmente, insistimos, sabe-se que há “pobres” que trabalham e mesmo assim não conseguem deixar de viver no limiar da sobrevivência. Como inverter este fenómeno?, insiste o FN.
“As pessoas que vivem na precariedade laboral e com os salários baixos são quem menos consegue suportar os custos de vida elevados que aí estão”, reconhece Edgar. “As pessoas com trabalho precário, nos sectores do turismo, na limpeza, na restauração, nos transportes e animação turística, os falsos empregados em estágios e nos chamados POT`s, em diversos sectores da administração pública e na chamada economia social, são milhares de homens e de mulheres que sobrevivem na mais extremada exploração laboral e sujeitos a maiores riscos de pobreza. Mas, a ameaça de pobreza é sentida por quem vive dos rendimentos do seu trabalho”, admite.
“Recentemente”, cita, “o estudo «Pobreza em Portugal – Trajectos e Quotidianos», da Fundação Francisco Manuel dos Santos, revelou que a maioria das pessoas em situação de pobreza em Portugal trabalham: 32,9% são trabalhadores com vínculos efectivos, 26,6% com trabalhos precários. Cerca de um terço (32.9%) da população em situação de pobreza está empregada e a maioria com vínculo estável à empresa para a qual trabalha, em muitos casos, há mais de uma década. Vivemos numa sociedade em que os trabalhadores e trabalhadoras que ganham ordenados pouco acima do salário mínimo, o que dividido pelo conjunto do agregado familiar as arrasta para baixo do limiar da pobreza. Vivemos numa sociedade brutalmente desigual, em que há ricos a aforrar e a ver os seus activos valorizarem à boleia da política monetária europeia, à conta do Orçamento de Estado e do Orçamento Regional. Os grandes grupos económicos, o sector financeiro está a obter lucos extraordinários com que nem contavam nas suas mais favoráveis estimativas. Pelo contrário, os “instrangeiros” multiplicam-se nestas ilhas a que pertencemos”, lamenta o nosso entrevistado.
Por outro lado, “os sem-abrigo são um dos sinais inocultáveis de um universo mais profundo de gente destratada e abandonada. Multiplicam-se na proporção do agravamento da crise social. Eles indicam a existência de uma crise que provoca a formação, muito para além deles, de uma multidão menos exposta na rua, mas também tida como indesejável, descartável, destinada a sobreviver com os restos, com as migalhas sobrantes, e úteis para que uma certa caridade possa esmolar, com o objectivo de que os pobres permaneçam na pobreza”.
“Os sem-abrigo incorporam na rua dramas pessoais, somam problemas da saúde mental, as insuficiências de cuidados médicos, transportam às costas o peso de incapacidades de uma suposta “segurança social”, trazem para a rua desesperos, gritos de protesto e expressões de tantas violências”, retrata Edgar Silva.
“No entanto, significativo é o facto de que os sem-abrigo são um foco acusatório. Os sem-abrigo incomodam e acusam o total fracasso de políticos e de políticas que prometeram garantir uma “inclusão social”. Os governantes prometeram resolução e o problema só se agravou. Em virtude de novas toxicodependências, em determinados momentos, alguns dos sem-abrigo tornam-se uma presença agressiva e agressora. Então, aí fica ainda mais visível a trágica realidade social, o vazio do palavreado dos governantes sobre inclusão social e a mentira do desenvolvimento”. Fica a denúncia.
“Depois dos avultados apoios da União Europeia, depois das expressivas “ajudas ao desenvolvimento”, não só ficaram por resolver as assimetrias sociais, como também se enraizaram desigualdades territoriais. A Região não venceu profundas distorções sociais, e aos fenómenos das antigas clivagens sociais e territoriais somaram-se novos fatores de vulnerabilidade da base económica regional, de dependência e de pequenez da economia, de desvantagem competitiva, afirma o entrevistado.
“Esta Região Autónoma é um dos casos mais evidentes em Portugal do que foi uma grandiosa oportunidade perdida”, garante.
“Apesar dos ciclos de fundos europeus, esta Região modernizou-se, mas não se desenvolveu; alteraram-se alguns dos indicadores económicos e sociais, mas emergiram novas expressões das desigualdades e da injustiça social, criaram-se novos guetos e ultraperiferias sociais, acentuou-se o declive dos sectores produtivos e a decadência de zonas rurais. Uma monocultura do turismo agravou uma economia dependente e subsidiada. Foram décadas perdidas no que diz respeito a metas da coesão económica e social”.
“Quais os concelhos, hoje em dia, onde o risco de pobreza é mais grave?”, perguntou o FN.
A resposta é algo ambígua: “Na Madeira e no Porto Santo existem fundas desigualdades no interior de cada concelho, entre sítios e localidades de cada uma das freguesias. Na Região são muito acentuadas as disparidades quanto às actividades económicas, quanto aos indicadores de riqueza, no referente aos índices do poder de compra e relativamente ao nível de vida das populações. É possível mapear a profunda separação social. Existe uma cartografia do fosso que separa os pobres dos ricos. Portanto, seria errado pensar que o risco de pobreza se poderia limitar a alguns concelhos desta Região. “Os instrangeiros” moram nos vários concelhos da Região. Dentro de cada concelho, em cada uma das freguesias destas ilhas existe uma multidão a quem só chegam as migalhas ou algumas sobras do resto que os senhorios deixaram do festim do desenvolvimento”.
Considera que a droga, a violência e a insegurança se agravaram na Madeira?, foi outra das questões que colocámos.
Resposta: “Na RAM, aos problemas do desenvolvimento humano e social juntaram-se novos contornos da problemática social relacionados com as diversas toxicodependências. São novos vectores presentes na sociedade que, por vezes, instalam outros mecanismos de exclusão social. E, sobretudo, quando são os mais despossuídos amarrados a essas redes, o facto de ser pobre conduz ao consumo de “drogas” mais baratas, menos limpas, menos cosmopolitas, que estão nas ruas “a pataco”, refere. Uma situação confirmada ao FN por fontes policiais, a par do assunto.
“Até aí, nas toxicodependências existe uma maldita trama que implacavelmente leva o mais pobre para as margens e/ou para a marginalidade. Com os mais afortunados da sociedade é tudo bem diferente… Nesta Região Autónoma, a crise social está agravada pelos novos focos, pelos novos hábitos e rotas das toxicodependências, pelos lugares e manifestações da gramática das violências, como também pelo crescente sentimento de insegurança”, reconhece o líder regional da CDU.
Que soluções possíveis? Como inverter este estado de coisas? Que possibilidades para um progresso social e económico mais equilibrado?
“A recuperação dos comprometedores atrasos das últimas décadas requer uma viragem no modelo e nas opções do desenvolvimento regional. Implica transformações de fundo, desde logo, através da alteração das prioridades definidas na aplicação do investimento público e nas suas linhas de rumo”.
“As questões de fundo cruzam-se com medidas específicas para agir nos principais mecanismos de empobrecimento. Seria mentirosa a iniciativa para equacionar a problemática da pobreza se não começasse pelo fator trabalho/salário/rendimentos. Sem a valorização dos salários e, por consequência, sem o aumento das pensões e reformas não é tocada a raiz da separação social. É que, de entre os principais mecanismos de empobrecimento, direta e indiretamente, tem força determinante o trabalho/nível salarial pelo peso decisivo associado ao poder aquisitivo das famílias”, diz Edgar Silva.
“De entre os mecanismos de empobrecimento e pela sua influência na produção e perpetuação de situações de pobreza e de exclusão social, é imperioso atender, para além do mercado de trabalho, ao sistema educativo, à Segurança Social, à política de habitação e ao sistema de saúde. Colocaria um sublinhado na falta de habitação digna. Enquanto não forem resolvidos na Madeira tantos dos graves problemas habitacionais, estarão sempre por resolver causas profundas da pobreza e exclusão social. Em tantos casos, os problemas de exclusão social seriam equacionados pela positiva logo que a possibilidade de acesso a novas condições de habitação fosse uma realidade”.
Para o líder comunista regional, aliás e lamentavelmente, “este problema só se agravará nesta Região e complicará a crise social. As tremendas dificuldades no acesso a uma habitação serão um dos factores de exclusão social mais sentidos pelas populações nos próximos tempos”, conclui.