Lábios vermelhos de desVentura

Nunca fiquei bem de batom vermelho. Já tentei algumas vezes, sempre com resultados desastrosos.

E, pelos vistos, não sou a única. Foi vê-los, a eles e a elas, a desfilar nas redes sociais com os lábios nos mais variados tons de carmim. Porquê?

André Ventura. Novamente.

Ele e a sua, como diria a minha mãe, boca de jarra. Sem batom.

O movimento #VermelhoemBelem surge após Ventura, num dos seus habituais discursos de ódio destilado, ter dito que Marisa Matias “não está muito bem em termos de imagem, com aquele batom muito vermelho, como se fosse uma coisa de brincar”. Seja lá o que isso quer dizer.

O apoio veio dos mais variados quadrantes, da política às artes, do famoso ao anónimo, com texto ou só imagem e incendiou o mundo virtual. O meu preferido foi o David Fonseca. Eu gosto do David Fonseca.

Percebo a reação, a indignação. Percebo. Só acho que não é por aí o caminho.

Nunca lutes com um porco, ambos se sujam e o porco aprecia. Esta frase, talvez de Bernard Shaw, talvez de Mark Twain, talvez de qualquer outra pessoa com um belo espírito de observação, nunca me fez tanto sentido.

André Ventura alimenta-se disto, prospera com o que é polémico, incendiário. Usa e abusa da tática de Trump, dando alcunhas pejorativas aos adversários. Em vez de “crooked Hillary” e “sleepy Joe”, lembrou-se de “avô bêbedo”, “contrabandista” e “operário beto de Cascais”. Nem original consegue ser.

É um agente político teatral, a great pretender, e isto são os aplausos dele. São estas coisas que o fazem crescer. Não lhe podemos dar mais palco do que ele já tem. Não podemos descer ao nível dele.

É difícil? Se é.

Bastou ver os debates para as Presidenciais para perceber isso.

Toda a gente quis ver os do Ventura. Eu vi todos. Quer dizer, menos o do Tino de Rans. As audiências foram ótimas, porque a política-espetáculo vende. É como um acidente de carro. Por mais que não se queira, temos de espreitar quando por lá passamos.

E Ventura esteva nas suas sete quintas e todos, todos, num ou noutro momento, foram parar à lama.

Marisa Matias perdeu-se completamente. A si e às estribeiras. Recorreu ao insulto direto. Só insulta quem não tem mais nada que dizer.

Do debate com João Ferreira foi quase impossível retirar o que quer que seja, tal foi a gritaria, a interrupção constante e a falta de respeito. Quase parecia um debate do futebol, onde ganha quem mais alto fala. E aí ninguém vence Ventura.

Ana Gomes já vinha avisada e inicialmente até parecia que tinha feito o trabalho de casa. Não interpelou Ventura diretamente, optando por se dirigir ao jornalista. Até poderia ser uma boa estratégia, mas que acabou por parecer uma criança quando amua. Depois, ingenuamente, ataca Ventura dizendo que ele não tem o apoio do seu próprio partido. Ela, que não tem o apoio do PS. Será que não olhou para cima, antes de sair de casa, para ver os seus telhados de vidros? E ainda remata, defendendo-se da situação do Pedroso, com o facto de ser mãe e avó. Alhos com bugalhos.

Tiago Mayan Gonçalves quase que se aguentou à bronca. Apesar das sistemáticas referências de Ventura, metidas, en passant e com intuito puramente destabilizante e de descredibilização, da sua ausência de experiência no Parlamento e do baixo resultado nas sondagens.

Marcelo Rebelo de Sousa foi quem esteve melhor. De longe. Capitalizou a sua larga experiência política e o respeito que claramente inspira no adversário. E André começou nervoso. Parecia um menino de coro, nem remotamente aparentado ao André que debateu com João Ferreira. Marcelo deu cartas. O seu olhar de raposa matreira a olhar para a galinha foi épico. Explicou bem as diferenças na direita que os une, falou do poder da democracia e até, brilhantemente, do Papa e de Sá Carneiro. Que daria voltas no túmulo se imaginasse que Ventura o tem como ídolo. Mas não se livrou dos ataques, enerva-se, vacila e falha. Como quando refere que não é isso que lhe diz Ventura, em Belém. Usou, enquanto candidato, um trunfo de Presidente. Um faux pas.

Não é assim que se debate com André Ventura. Não é assim que se neutraliza um bully.

Isso até deveria ser um jogo de computador. Eu jogaria.

Não é deixando que faça das Presidenciais um debate parlamentar e uma plataforma para as autárquicas e legislativas.

Não é deixando que traga à colação casos e casinhos, ilustrados com fotos e tudo, que nada têm a ver com a Presidência, como se estivesse num tribunal americano.

Não é atacando Luís Filipe Vieira, com que Ventura já aproveitou para parodiar Ana Gomes, num clássico de contra-ataque antes do ataque.

Não é ilegalizando o Chega, como inexplicavelmente defendem Marisa Matias e Ana Gomes, versão Dupond e Dupont.

Não é sequer expondo, em grandes reportagens, os meandros escusos onde se move ou atacando-o com notícias para descredibilizá-lo. Porque Ventura pode até ser um demagogo, mas porque encontrou aí o seu nicho, não por ser estúpido. Porque de estúpido não tem nada. E vai aproveitar tudo isso para se vitimizar, o que sabe fazer com hábil mestria. Deixá-lo contar a narrativa de perseguido é um perigo. Porque Portugal adora um pobre coitado, um underdog. Há sempre espaço num coração luso para isso. Como houve para o afónico Jerónimo de Sousa nas legislativas de 2005.

Não é chamando-o racista, xenófobo, populista, oportunista, troca-tintas ou catavento do sistema. Por mais que apeteça. E ele mereça.

Não é rebaixando-se a ele. É elevando o tom.

Só se pode ganhar Ventura no plano das ideias. Porque ele não tem nenhumas. E as poucas que tem são péssimas. E matérias não faltam. Basta ver o programa do Chega. Ler com olhos de ver. Como a pérola de todas as escolas passarem a ser propriedade dos professores que ali lecionam.

É preciso desmitificar a personagem anti-sistema, que é, ao invés, o pior resultado do próprio sistema.

É preciso desmontar a retórica que usa e abusa, igual à do Sr. João do café dali de baixo. Nada contra o Sr. João e as suas opiniões, mas sei que não o quereria como meu Presidente.

É preciso esvaziar o mas. O mas de todos os que dizem, eu não gosto do André Ventura, mas lá que ele diz umas coisas certas, diz. Não diz. Só se for por engano.

É preciso desmascará-lo. Como fez Macron a Marine Le Pen no debate das Presidenciais francesas de 2017.

E urge fazê-lo rapidamente. Porque a brincar, a brincar e a pintar os lábios de vermelho, Ventura já surge como segundo nas intenções de votos para a eleição do próximo domingo.

Esse que assume que não será o Presidente de todos os Portugueses.

Esse que disse que quer a alma portuguesa, quer reencontrá-la e fazer de Portugal um dos maiores países da Europa. Make Portugal great again? Ao menos não nos quer orgulhosamente sós. Ainda.

O que ainda me alenta é que Ventura poderá ser um fenómeno de curta-duração, suportado por um partido criado à sua imagem, de culto ao líder. Um partido de gente conflituosa, com diferentes agendas só compatíveis na intolerância e agora até com lei de rolha. Um partido que provavelmente implodirá, arrastando Ventura na sua queda.

O que me preocupa é que André Ventura está em todo o lado. Foi até tópico do debate entre Marcelo e Ana Gomes. Pasme-se.

O que me preocupa é que todos lhe dão palco.

Exatamente como eu estou a fazer.