Vai ser diferente?

A 22 de Junho último, foi conhecido o estudo “O Impacto Social da Pandemia”, elaborado pelo Instituto de Ciências Sociais e pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, a partir dos inquéritos efectuados a 752 portugueses, em duas fases, uma no final de Março e a outra entre os dias 24 de Abril e 4 de Maio.

Entre as conclusões tornadas público, que envolveu uma amostra não representativa da população, ressalta o receio, manifestado pelos inquiridos, de, ultrapassada a crise sanitária, “voltar tudo ao normal”, isto é, “ao mesmo normal que nos fez chegar aqui: uma sociedade especista, centrada numa economia neoliberal promotora de desigualdades brutais, onde a solidariedade e a empatia não têm lugar ou são residuais”.

De acordo com a notícia divulgada pelo jornal “Público”, a fragilização das democracias e o reforço das derivas populistas são outras das preocupações recorrentes, a par do risco de desintegração do projecto europeu. No dia-a-dia de todos, estas ameaças poderão ter tradução prática num “excessivo controlo da vida dos cidadãos por parte das autoridades”, com a consequente perda do direito à privacidade. “Não deveríamos tomar a democracia por garantida tão levianamente”, avisa um dos inquiridos, entre outras respostas que apontam a ausência de líderes políticos capazes. E, entre os mais novos, sobressai ainda a preocupação de deixar de ser possível emigrar para fugir a uma qualquer crise.

Poder-se-ia dizer que o desejo de muitos portugueses, de mudar a forma como nos organizamos socialmente, coincide com o pensamento expresso pelo Presidente da República no discurso comemorativo do 10 de Junho, nomeadamente quando referiu que “não podemos admitir que algo de grave ou muito grave ocorreu e esperar que as soluções de ontem sejam as soluções de amanhã”, para defender que “Portugal não pode fingir que não existiu e existe pandemia, como não pode fingir que não existiu e existe brutal crise económica e financeira”.

Bastou, porém, uma semana para se perceber que não há razão para alimentarmos ilusões. Afinal, como sublinhou a jornalista São José Almeida, num texto publicado no referido jornal diário, “tudo parece ir continuar a ser como era”. A explicação reside na euforia com que os principais órgãos de soberania nacionais receberam a decisão do comité executivo da UEFA de que as eliminatórias em falta na Liga dos Campeões 2019-20 se realizarão em Lisboa, entre 12 e 23 de Agosto próximo. “Entusiasmo» que a levou a considerar que “ao nível dos decisores políticos, o padrão português parece manter-se: Fátima, futebol e fado”.

Euforia ainda maior vem invadindo os governantes nacionais e regionais perante a perspectiva do país e das suas regiões virem a dispôr de uma “bazuca” de fundos comunitários, se a proposta da Comissão Europeia para fazer face à presente crise – que prevê a concessão a Portugal de 26,3 mil milhões de euros (15,5 mil milhões a fundo perdido e 10,8 mil milhões de empréstimos mutualizados da União Europeia), qualquer coisa como 13% do PIB português -, vier a ser aprovada no Conselho Europeu de 18 de Julho corrente.

Ao nível continental, é oficial que está a ser preparado um Programa de Recuperação Económica e Social que aponte caminhos para uma década de políticas públicas, para cuja coordenação o primeiro-ministro convidou o gestor António Costa Silva. Por cá, reivindica-se e quer-se saber apenas qual o montante a que a Região tem/terá direito (nas contas do deputado Carlos Pereira, a verba será de um milhão de euros por dia, a fundo perdido, nos próximos 4 anos!). Como e em que áreas irá ser gasta a “pipa de massa”, isso não interessa. Faz-se como no passado, derrama-se o dinheiro na economia. E repete-se a receita do “querido e amado líder”: “Com dinheiro, faço obras, com inaugurações ganho eleições”. Vai uma aposta?

É que se a intenção fosse outra, o debate, a discussão deveria estar centrado na definição clara das áreas em que investir, dos sectores em que apostar, com um objectivo primordial: tornar a economia regional menos dependente do exterior e, em simultâneo, diversificá-la, por forma a pôr cobro a uma marca secular: à sua dependência de um único sector, de uma monocultura, assente em ciclos, dadas as fragilidades que daí advêm, como de resto a história tem comprovado exaustivamente.

Esperar que agora fosse diferente, que a oportunidade fosse aproveitada para criar uma economia regional mais sustentada e sustentável, que, finalmente, o futuro da Região fosse planeado, é certamente desejável, mas, face ao que se tem visto, não é expectável que aconteça. O ADN dos governantes que temos tido não comporta essa componente. Planear nunca fez parte do seu dicionário. O único planeamento com que se preocupam é como ganhar as próximas eleições. A prová-lo basta referir que, aqui e agora, houve instrumentos de planeamento que apenas foram criados porque o acesso a fundos comunitários o exigia, caso contrário nunca teriam visto a luz do dia. O seu planeamento faz-se no essencial a partir de um mapa aberto em cima do capô de um carro, estacionado no adro da igreja. Mais do que isso é pedir demais, na medida em que pode conflituar com os interesses em presença, com o acesso ao pote do dinheiro dos fregueses do costume.

A 13 de Junho p.p., Miguel de Sousa Tavares, no seu habitual espaço de opinião no semanário “Expresso”, a propósito da perspectiva de Portugal dispor de mais de 15 mil milhões a fundo perdido “para gastar no prazo de três anos”, comentava declarações do ministro da Economia, Pedro Siza Vieira à revista “Visão”, designadamente o apelo às empresas: “Preparem-se, porque vão ter uma oportunidade provavelmente única na nossa História para aplicar recursos naquilo que faz falta e criar condições de crescimento, de competitividade e de produtividade para as vossas empresas”, e não resistia a considerar que “soa mais ao antiquíssimo grito que, ao longo da nossa História, foi sempre sinal de desgraça: “É fartar vilanagem!”.

A justificar essa leitura, MST no texto que titulou “Teme-se o pior”, alude a “promessas semelhantes vividas nos anos primeiros do que então ficou conhecido como «cavaquismo» ” e recorda “como nasceram empresas como cogumelos, financiadas com dinheiros europeus, antes mesmo de saberem o que queriam fazer. Da profusão de tias e sobrinhas que descobriram uma vocação inesperada para darem cursos de formação financiados por Bruxelas, em qualquer área ou ramo – muitos dos quais nunca chegaram a acontecer nem o respectivo processo-crime por burla nunca chegou ao fim antes de prescrever, como sucedeu com uma das maiores empresas do país, que também resolveu dedicar-se ao ramo”. E acrescentava: “Lembro-me das auto-estradas para todo o lado e lado nenhum ou, como sabiamente previu Ribeiro Teles, para mais depressa trazerem os legumes e frutas espanhóis, injectados de água e corantes, para os supermercados portugueses, assim arruinando os produtores nacionais – cujo futuro, aliás, o ministro da Agricultura de Cavaco Silva já tinha alienado a Bruxelas a troco de uma ninharia de 120 milhões de contos”. Um retrato que, está bom de ver, aplica-se, na íntegra, ao que se passou por estas bandas. Basta mudar os nomes e não faltam os exemplos.

E, infelizmente, nada garante que, desta feita, possa ser diferente!

Manuel Carlos Nogueira, economista e docente universitário, publicou, no “Público” de 16 de Junho último, um artigo de opinião, intitulado “Do patrão à produtividade”, em que, depois de referir que “em Portugal, em termos empresariais temos um grave problema secular: muitos patrões, alguns empresários e poucos (mesmo poucos) gestores”, sublinhava: “O patronato é uma classe de impreparados, exploram os seus trabalhadores, provocam insolvências, destroem valor e têm uma enorme falta de visão. Na verdade, são terrivelmente míopes ao ponto de estarem sempre a dar tiros nos próprios pés. O patronato não faz por mal, o problema é que não sabe fazer melhor, mas também não se esforça por aprender e tem aversão aos mais preparados, pois tem medo de que lhes ocupem os lugares”. Como solução para este grave problema que condiciona, não tenhamos dúvidas, o futuro do país e da região, Carlos Nogueira defende ser “necessário apostar em formação profissional exclusiva para empresários. Normalmente a formação destina-se aos funcionários das empresas, pois o patronato acha que não precisa, mas os empresários precisam e muito de formação em gestão. Só com formação orientada é que estes conseguirão melhorar a produtividade das suas empresas e por consequência a competitividade global do país”.

Ou seja, o risco do cenário, do desfecho repetir-se é real. Tanto mais que não se percepciona que haja esta preocupação por parte, quer de quem se prepara para ir ao pote de dinheiros públicos, quer de quem os irá distribuir, os governos.

Há, aliás, sinais de que quem governa não aprendeu nada com a pandemia. É a conclusão a tirar do facto do primeiro-ministro ter reafirmado que o aeroporto do Montijo vai mesmo avançar. Isto antes de se perceber qual será o futuro da aviação comercial nos próximos anos.

Não admira por isso que Fernando Sobral, jornalista e escritor, tenha escrito no “Público” de 14 de Junho último um texto intitulado “No país dos abacaxis”, em que concluía: “O «agora é que é!» soa a um velho disco de vinil riscado. Porque, entre nós, sempre se preferiu a renda ao risco. Muitos dos que nasceram, cresceram e singraram neste situacionismo estão certos disso. Num país que gosta de construir elefantes brancos como obras de regime, há sempre dinheiro para alguns. Os que guiam as renas do Pai Natal. Os senhores dos abacaxis” – uma leitura que, sem sombra de dúvida, foi (é) também o retrato do percurso da região ao longo dos tempos.

Em todo o caso, pode ser, como escreveu Pacheco Pereira (“Público” de 20/6), que: “Talvez se façam duas ou três coisas em que não se possa voltar para trás: um robusto sistema universal e gratuito de saúde, acesso universal à Internet, comboios que sirvam Portugal, o fim do «Jamaica» com casas decentes, etc.”. Ou e ainda, como realçou São José Almeida, no mesmo jornal, a 13 de Junho, que se acabe com o modelo redistributivo de riqueza que temos, assente “em baixos salários, no alastramento do trabalho precário – incluindo no Estado -, num sistema de Estado-providência que apenas serve com alguma dignidade aquilo que se considera ser a classe média e média-baixa e que deixa uma massa imensa de pessoas dependentes do assistencialismo pelo Estado ou por organizações civis”.

Uma receita que, no essencial, se replicada na Região seria, naturalmente, bem-vinda por ser igualmente necessária.

Desejos portadores de excesso de optimismo? Conhecedores do que a casa (o país, a região) gasta, provavelmente, sim.

Conforta-nos, entretanto, saber que, segundo o primeiro projecto de investigação à escala mundial sobre os efeitos sobre a democracia das medidas excepcionais e de emergência durante a pandemia, elaborado pela rede Varieties of Democracy, sediada na Universidade de Gotemburgo (Suécia), Portugal surge entre os países que, pelo menos até meados de Maio, quando os dados foram acabados de reunir, não apresenta sinais de perigo de degradação da democracia, ao contrário do que sucedeu com 82 dos 140 países analisados, em que as medidas musculadas tomadas em muitos Estados a pretexto do coronavírus agravaram o declínio dos regimes democráticos.

Um facto que, como sublinhou em declarações ao “Público”, Tiago Fernandes – que em Portugal coordenou a equipa do projecto – “é ainda mais alarmante no contexto do recente declínio democrático global antes da covid, já que um terço da população mundial vive em países onde a democracia estava em declínio e, pela primeira vez em duas décadas, a maioria dos países do mundo são autocracias”.

Refira-se que no estudo considera-se existir risco em regimes democráticos se as medidas de emergência tomadas forem desproporcionais ou se prolongarem no tempo, mesmo após a situação que lhes deu origem estar solucionada.

Brasil e Moçambique são os dois países de língua portuguesa que foram classificados em risco elevado de retrocesso democrático, a par da Hungria, Roménia, Bulgária e Grécia, África do Sul, Índia e Egipto. Os EUA estão em risco médio, assim como a Polónia e Espanha (Europa), Colômbia, Argentina, Turquia e Indonésia, entre outros.

E o panorama global tenderá a agravar-se se Trump conseguir ser reeleito em Novembro. Não por acaso, o escritor Paul Auster já sentenciou: “Se Trump for reeleito, os EUA acabam”.

 

* Por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Post-Scriptum: 1) Mais Pobres: Com o falecimento do Padre Mário Tavares e da Professora Conceição Pereira a Região perdeu dois cidadãos cuja vida foi dedicada à construção de uma sociedade mais justa e mais solidária. E que sempre o fizeram sem almejar qualquer benefício pessoal. Constituem por isso dois exemplos de vida de dedicação aos outros, aos marginalizados, aos esquecidos, aos sem direitos. Com obra feita na luta pela dignificação dos caseiros, das bordadeiras de casa, pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, pela consagração de direitos dos trabalhadores, pelo assegurar de uma cidadania plena a todos os cidadãos. Bem hajam!

2) Tragédia: No ano passado, quase metade dos homicídios tentados ou consumados em Portugal foram praticados por quem tinha uma relação de intimidade (cônjuges, companheiros, ex-companheiros, namorados, ex-namorados) ou familiar (pais, mães ou filhos) com a vítima.

3) Monopólio: De acordo com uma notícia veiculada pela RTP-M – e não desmentida -, está em curso um negócio de concentração da imprensa escrita regional nas mãos dos donos disto tudo, uma parceria que envolve a “Madeira Velha” e a “Madeira Nova”. Que na prática significará que há/haverá um leque de assuntos, temas incómodos que serão tabu para os matutinos locais. Como, por exemplo, a “cartelização do transporte marítimo de mercadorias”, a “extracção de inertes”, etc., enfim, tudo o que possa afectar os interesses do triunvirato: Sousas, AFA, Blandy. Já agora: a Autoridade da Concorrência e a Entidade Reguladora da Comunicação Social nada têm a dizer sobre o assunto?

4) Grande Lata: O “campeão português do insulto” que tudo fez para silenciar vozes incómodas, que ameaçou publicações e jornalistas, que no exercício de funções atentou contra direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, veio queixar-se da “censura vigente”. Coitada da criatura! O que vale é que no meio da safadeza, logo apareceram umas almas caridosas a convidá-lo para umas “conversas”, “uma tertúlia” e uma “conferência”.

5) Protagonismos: A propósito do recurso ao “habeas corpus” por parte de cidadãos durante a quarentena imposta pelo governo regional, o presidente da ALM classificou a decisão como um desejo de “protagonismo”. Logo ele! Que procura ser notícia todos os dias. Que se comporta como se fosse uma espécie de secretário sem pasta do executivo. A sua sede de protagonismo é tanta que até assinalou os 8 (!) meses de presidência. E os 9, não? Se o narcisismo exacerbado pagasse imposto…

6) Lastro: A “escola” protagonizada pela dupla composta pelo oficial de acção psicológica e pelo cabo cripto continua a ser a imagem de marca do parl (a) mento regional. E, como se tem visto, podem invocar-se títulos académicos, mas tal não significa que se seja portador de educação ou de ética. Ou se tem, ou não se tem, pura e simplesmente.