O fim da indústria da aviação canadiana

Esta semana a construtora Bombardier anunciou a venda do programa Canadair Regional Jet (CRJ) à Mitsubishi. A Bombardier é um conglomerado industrial canadiano que começou por fabricar inovadores trenós de ski motorizados, uma invenção do fundador cujo nome é a insígnia da empresa. Os portugueses lembrar-se-ão da fábrica que a Bombardier tinha na Amadora (SOREFAME), de onde saíram as carruagens do Metro de Lisboa, por exemplo. Este é um dos maiores “players” mundiais da construção de equipamento ferroviário, e até há um ano, o quarto grupo industrial da aeronáutica civil. A Bombardier passou a construtor aeronáutico com a aquisição de três empresas na década de 80: a Canadair, a Learjet e a de Havilland Canada. Da Learjet vieram os business jets, cuja série 70/75 ainda se produz. Da Canadair veio também um jato privado, o Challenger, e ambos são o remanescente da Bombardier Aviation, que há dois anos representava metade do negócio do grupo. Da Canadair veio também o célebre avião de combate aos incêndios CL-215/415, em 2016 vendido à canadiana Viking Air. Apesar da importância deste avião para a sociedade, a produção é marginal.

A rica história da aviação civil canadiana muito deve à De Havilland Canada, que produziu vários modelos de sucesso, todos a hélice.

Em 2006 a Viking Air adquiriu à Bombardier todos os modelos De Havilland Canada fora de produção à data, entre eles o DHC-6 Twin Otter, que os madeirenses bem conhecem. A TAP Regional operou a linha de Porto Santo com essa máquina nos anos 80. A Viking Air modernizou apenas o Twin Otter, uma aeronave cujo primeiro voo ocorreu em 1965. Retomou produção em 2010, entregando mais de 100 aeronaves a clientes por todo o mundo, inclusive em Timor Leste.

 

Twin Otter anfíbio em Valetta (crédito: José Luís Sousa Freitas)

A Madeira conhece bem o DHC-8, mais conhecido por “Dash 8”, do qual é composta toda a frota da SATA Air Açores. O Dash 8 foi também vendido à Viking Air que o fabricará e comercializará através da nova subsidiária De Havilland Aircraft of Canada Ltd. Suspeita-se que é uma falência planeada porque o modelo não tem sido alvo de modernização ao logo desta década, e porque instalação fabril não fez parte da transação acordada em 2018. A Viking Air tem três anos para arranjar um sítio novo, e realojar 1000 empregados. O mais provável é satisfazer as encomendas pendentes, e encerrar o ciclo.

Voltando ao CRJ, este foi o grande “hit” Bombardier. Colocou a sua equipa de engenharia a conceber um avião comercial de passageiros a partir do business jet Challenger, que fazia parte do portefólio da Canadair, e gozava de uma cabine larga e confortável.  Esticando a fuselagem criou o CRJ100/200, com capacidade para 50 passageiros, tendo como primeiro operador a Lufthansa CityLine no início da década de 90. Vendeu mais de 1000 unidades, e deste sucesso surgiu o projeto CRJ700, operacionalizado em 2001. Consistiu em novo alongamento da fuselagem e motorização mais potente, o que dotou a Bombardier de oferta no segmento dos 70 passageiros. À medida que a Embraer foi lançando os modelos da série E-Jets (E170/175/190/195), a Bombardier foi dando réplica, primeiro com o CRJ 900 (2007) e finalmente com o CRJ1000 (2010). Estes são visita frequente à Madeira, trazidos pela Air Nostrum, que opera os voos da Iberia no verão.

Três CRJ da Air Nostrum na Madeira (crédito: José Luís Sousa Freitas)

A geração 700/900/1000 do CRJ rendeu mais de 800 vendas à Bombardier, até saturar o mercado. A elevação dos custos de combustível no início da década tornou pouco rentável a operação de jactos com 100 passageiros. O passo natural era entrar nos segmentos até então dominados Boeing e Airbus. A Embraer lançou o E2, basicamente um “stretch” do E-Jets. A Bombardier, após imensa relutância, apostou num modelo totalmente desenvolvido de raiz, conhecido pelo C-Series, cujo primeiro voo comercial teve lugar em 2016, nas cores da Swiss.

Bombardier Cseries e Challenger em Moscovo (crédito: José Luís Sousa Freitas)

Foi então que começaram os problemas. A Bombardier tinha um produto tecnicamente sólido, mas insuficientes recursos de produção e marketing. A última gota foi quando a Boeing tentou sabotar a venda de 70 unidades à Delta Airlines, através de uma nova taxa de importação criada pela administração Trump a produtos importados do Canadá. Isto para proteger o Boeing 737MAX. Encostada entre a espada e a parede só restou à Bombardier uma saída: a venda do programa CSeries à Airbus que o fabricará nos EUA, onde tem capacidade fabril. Mas já “rebranded” como Airbus 220. Isto motivou a Boeing a abordar a Embraer e tomar conta do E-2, especulando-se que também poderá mudar de nome comercial.

O ano de 2018 marca o ocaso da aviação do grupo Bombardier, e francamente da indústria aeronáutica civil canadiana.

A venda do programa CRJ à Mitsubishi é apenas o golpe de misericórdia na indústria canadiana. O real interesse dos japoneses é a rede de centros de manutenção, “know-how” de engenharia, e eventualmente alguma capacidade de produção. A Mitsubishi anda há mais de uma década a desenvolver um competidor chamado Mitsubishi Regional Jet (MRJ), cujo lançamento anunciou em 2007. Sucessivos problemas encontrados durante as fases de testes, obrigaram a imensas alterações, e até à data nenhum está operacional, quando a primeira entrega deveria ter ocorrido em 2013. Em simultâneo com a aquisição do programa CRJ, anunciaram o “rebranding” do MRJ para “SpaceJet”. Na minha óptica este modelo vem tarde demais para competir num mercado maduro, e saturado. Se realmente consideram a mudança comercial uma ação necessária para potenciar a aceitação junto de clientes, mais sentido faria capitalizar numa marca forte: “Bombardier MRJ” ou “Canadair MRJ”.