O Direito à Verdade

O DIREITO À VERDADE

 

1 No momento em que me preparo para começar a escrever o texto a que, ao contrário do que costumo fazer, entendi atribuir, desde logo, o título acima, corre o País, em parangonas persecutórias, a estória de um vereador da Câmara Municipal de Lisboa que terá comprado à Segurança Social, há alguns anos, um imóvel por um determinado preço e que, depois de recuperado, restaurado, etc., lhe possibilitará auferir uma significativa mais-valia que ele, obviamente, e com total legitimidade, encaixará. É incoerente? “Bem prega Frei Tomás”? É moralmente criticável? – Será isso tudo e pregando o que bem quiser; mas, por andam os outros, que a nossa comunicação social sistematicamente ignora, omite, esquece e perdoa quando se trata dos amigos dos seus patrões?

No quadro de uma informação séria, não persecutória, isenta, verdadeira, não militante e que tivesse um horizonte mais largo e criterioso do que a mera, mas intransigente, defesa da argumentação que os sectores ideológicos a que está ligada lhe exigem, a única confirmação que importaria obter teria a ver com o valor pelo qual o prédio havia sido comprado; se, prova provada, o valor por que adquiriu a propriedade tiver sido o mesmo, e não um preço de favor, de que um qualquer outro cidadão pudesse ter beneficiado, não haveria, nem haverá, nada a apontar: deixem-no em paz.

2 – O desprezo pela verdade, pelo que é importante, pelo que é socialmente relevante e pelo que deve ser politicamente escrutinado vai-se acentuando, vai distorcendo, vai enviesando e vai minando os alicerces da democracia por interferência persistente nos critérios de avaliação de quem, pensando estar a ser informado, está, isso sim, a ser manipulado e, por essa via, arregimentado para o lote dos maldizentes, dos descontentes, dos descrentes, dos cépticos e de todas aquelas e aqueles que vão dando alento a ameaçadores discursos populistas, incorporando os movimentos por eles protagonizados e alimentados, em nada identificáveis com a democracia, com a liberdade e com aquilo que imaginámos ser possível na edificação de uma sociedade decente.

Talvez por estar num patamar etário em que, porventura sem querer, se resiste com mais veemência a alguns ensaios de modernidade discutível e a outros de indesmentível desadequação, a pós-verdade, a mentira servida com a importação anglófona das fake news, a meia verdade, a insinuação, a suspeita, a inconstância argumentativa, a incoerência por regra, a desvalorização e perda – definitiva (?) – do peso da palavra e do seu significado na relação com os outros e a incontinência verbal constituindo razões poderosas para o estimular das nossas indignações constantes – e apesar disso – instalaram-se e povoam hoje, descaradamente, o nosso quotidiano, invadindo a nossa inteligência e fazendo prevalecer o sentimento de que não se pode acreditar em nada nem em ninguém: perigosíssimo!

E não, não são (apenas) as redes sociais, são os convencionais meios de comunicação social, jornais, televisões e rádios que, escolhendo um lado, ignorando outros, de modo pérfido, apontam as suas baterias, atingindo muitos dos alvos “eleitos” por eles e pelos seus mandantes provocando algumas vítimas que o senso comum, o decoro e o papel social que desempenham, ou deveriam desempenhar, aconselhariam ter recusado.

Ao serviço do que há de menos recomendável, persegue-se, denigre-se, desintegra-se, destrói-se. Tudo feito, pasme-se com a hipocrisia exibida, em nome da transparência, da seriedade, do combate à corrupção, da seriedade de processos e da purificação do regime.

Não é possível que continuemos a ver o mundo governado por tweets, a guerra, ou a paz, decididas por infantis e descabeladas ameaças, o equilíbrio internacional suportado e mantido, não na diplomacia mas nas mais insensatas e descaradas mentiras, as planetárias trocas comerciais influenciadas, exclusivamente, pelo poderio económico e pela ostentação bélica, as preocupações geoestratégicas reduzidas aos interesses de “amiguismos” e às alianças de circunstância, o relacionamento entre estados dependente da sensatez de apenas alguns para evitar rupturas e deixar abertos os, cada vez menos existentes, caminhos do diálogo, o planeta Terra nas mãos, bárbaras, de todos aqueles que interiorizaram e adoptaram que as evidências científicas, porque lhes são incómodas ou prejudiciais, não são para levar em linha de conta, o recuperar da xenofobia e do racismo, a ser agredido diariamente no que tem de unificador e de solidário, enfim, não é possível que continuemos a ver o mundo, dizia, nesta amarga erosão e nesta desaustinada corrida para o impensável.

Os cidadãos têm direito à verdade; e só a verdade é estruturante, sólida e capaz de permitir que, sobre ela, se construa um futuro de equilíbrio partilhado e de aperfeiçoamento cívico que possa corresponder, sem comprometer a realização respectiva, aos anseios legítimos de todos os que entendem a vida como o resultado do seu trabalho, da sua inteligência e das suas conquistas e ao seu reconhecimento por parte de quem o deve manifestar. Sim, sei que sou militantemente ingénuo, que exercito alguns anacronismos e que, apesar do meu agnosticismo, acredito no Homem e na sua capacidade de criar e de transformar em benefício da esmagadora maioria dos que povoam o planeta. Mas, pensando com elevação, agindo com convicção, governando com razão e utilizando os processos que a transparência e a seriedade postulam.

PS:

As notícias do dia 27 já davam conta de que a casa objecto de notícia havia sido vandalizada na sequência das notícias incriminatórias referidas. Ninguém percebe, num Estado que o mereça ser, o perigo que representam estas campanhas públicas e publicadas, estas suspeitas públicas e publicadas, estas acusações públicas e publicadas? – Bom, então estamos mesmo muito mal.

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Nota: o autor deste texto escreve de acordo com a antiga ortografia.