Indignação perante os reembolsos das viagens dos deputados

“Tenta que essa indignação não se fique por um desabafo improdutivo,

mas que se converta num motor que fortaleça a política e melhore as nossas democracias”

(Daniel Innerarity in A política em tempos de indignação)

 

A recente notícia (Expresso) relativa aos deputados das Regiões Autónomas portuguesas, à Assembleia da República, continua a produzir matéria. À excepção da deputada do PSD, eleita pelo círculo da Madeira, Rubina Berardo, os referidos deputados não hesitavam em recorrer a um expediente, supostamente legal, no sentido de usufruir de um duplo subsídio respeitante às viagens a que teriam direito. Entretanto, os deputados Paulino Ascensão e Sara Madruga (Madeira) anunciaram a intenção de devolver os valores.

Os partidos, mesmo que timidamente, sobretudo porque pressionados pelos média, vão deixando saber, pela voz dos seus representantes, que o procedimento é legal (quem será que o legislou?!) e que “o resto é da consciência moral e ética de cada um”.

Nas últimas horas, Ferro Rodrigues pronunciou-se favoravelmente ao dito expediente e Carlos César (um dos deputados visados no escrutínio) entende que o seu comportamento é “eticamente irrepreensível”. Ao afirmar, ainda segundo o Expresso, que a “subcomissão de Ética e comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas (… são) as sedes próprias para avaliar o cumprimento das regras e para equacionar eventuais alterações legislativas que contribuam para a clarificação e a transparência” mas, simultaneamente, declarar que não foram “beliscados” quaisquer princípios éticos, Ferro Rodrigues antecipa e torna “difícil” o trabalho das citadas sedes, parecendo – de alguma forma – pressionar/condicionar – os seus eventuais pareceres. É lamentável.

Considero igualmente deplorável que o Presidente do principal órgão de soberania se preste a este mau serviço ao significado da casa a que preside. Ferro Rodrigues coloca-se, desse modo, no lado do problema. Ao que designa como “dinâmicas que apenas visam diminuir a representação democrática com julgamentos éticos descabidos e apressados” (Expresso) eu contraponho o exercício de cidadania que é, não só uma prerrogativa de escrutínio, como uma obrigação democrática de todos os cidadãos. Não são estes que visam “diminuir a representação democrática” mas esta que, deste modo, se apouca e diminui no aviltamento das suas funções e missões.

Ora, o facto de os deputados receberem um benefício, em duplicado, é preocupante. Entenderem que este novo legal-normal faz sentido, é gravíssimo. Quase roça a patologia. É esta falta de percepção do dano à comunidade que representa, em minha opinião, o patamar da instauração da deterioração do exercício do serviço público.

O suborno, a corrupção e a fraude representam, actualmente, algumas das mais poderosas armas contra a ética política e das mais rudes dimensões da fragilização / falência dos sistemas democráticos. Não é recente o tema da perda de qualidade dos detentores de cargos políticos e das consequências nefastas e mesmo devastadoras ao nível do exercício desses mesmos cargos.  Não será, assim, necessário evocar tratados de ciência política no sentido de elucidar o carácter doloso desta postura independentemente de ser legal. Os portugueses, em especial os ilhéus, viveram (não tenho a certeza se devo empregar este pretérito) um período de austeridade duríssimo, com perda de qualidade de vida para muitos cidadãos, com privação de direitos, reduzindo muitos a um patamar de sobrevivência muito abaixo do considerado nível de dignidade. O desemprego e a escassez de poder financeiro flagelou tantas famílias, algumas obrigadas a ceder à separação que toda a emigração forçada implica, outras subsistindo, mensalmente, com valores muito inferiores a apenas um dos subsídios que os ditos deputados auferem. Muitos dos mais velhos e frágeis de todos, os pensionistas (que não os da elite das pensões) tiveram de abdicar, por exemplo, da farmácia e do supermercado para que estes deputados possam desfrutar destas duplas benesses.

É neste quadro agravado que o usufruto dos citados benefícios, mesmo que legal, por parte destes deputados faz disparar – com acentuada agravante – os alarmes da Ética. É neste contexto que nasce e floresce o que se convencionou designar como “descrédito da classe política”  e que desvanece um dos valores fundamentais da Democracia: a transparência.

Não podem, tão pouco, os partidos clamar a “consciência de cada um”. É a ética político-partidária que se coloca em causa e, consequentemente, a “cara” com que os partidos se apresentam aos respectivos eleitores. A verdade é que, este tipo de comportamento não só resvala no campo da Ética como fere a Constituição no articulado dos seus princípios.

O movimento internacional pela transparência dos regimes políticos que visa a protecção da qualidade ética das democracias e a sua autenticidade, no que significa de representação do povo e para o povo, assume como muito relevante o papel das Escolas e dos professores na construção de sociedades mais justas. De acordo, as Escolas são lugares onde se ensina o valor do respeito, da responsabilidade individual e social e da Democracia, onde os alunos, futuros cidadãos com responsabilidades nos desígnios de cada nação, são encorajados a exercer a cidadania como forma de contribuir para essa mesma construção. Algo se quebra na linha dos “entretantos”.

A indignação cidadã que este caso está a suscitar, emanada da imprensa no cumprimento de uma das suas principais missões, deve frutificar em actos concretos de defesa do erário público não no sentido de uma exagerada frugalidade (que até seria apropriada, dado o estado do país), mas no do estabelecimento de um patamar de decência que não ofenda os representados.

Os deputados em questão e o seu representante máximo esqueceram-se, de uma forma tristemente generalizada, que a sua posição de privilégio resulta da responsabilidade social do exercício de um cargo de representação pública e do serviço que ao mesmo cabe, e não do acesso a um qualquer “limbo” onde se tornam diferentes, porque superiores aos seus eleitores. Afinal, isso configuraria a utilização abusiva da Democracia para o exercício do seu contrário.

Será discutível o entendimento de que há “fraude” ou “corrupção” quando estaremos, muito provavelmente, diante de um expediente legal. Não deixa de ser uma vilania, a da legalidade de procedimentos eticamente condenáveis e o uso voluntário de uma benesse que configura um exagero de privilégio.

Reitero a minha indignação cidadã diante deste expediente. Se é legal deveria deixar de o ser. É um abuso de privilégio e isso é – em si mesmo – o exacto contrário da Democracia.

Gostaria de ter ouvido, do Presidente da Assembleia da República, palavras de contenção e de respeito, de cuidado e de sabedoria. As suas palavras foram de uma vulgaridade política, qual impropério diante da casa que representa e em nome da qual se pronuncia. Não há, repito, neste caso, “dinâmicas que apenas visam diminuir a representação democrática com julgamentos éticos descabidos e apressados”. Há escrutínio e essa é uma função de todos os cidadãos. Acentuo, assim, o meu mais profundo registo de indignação.

É um cliché, eu sei, mas “tudo isto existe, tudo isto é triste…”