O Triunfo dos Porcos

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Não existe uma correspondência perfeita entre o enredo e a realidade, mas apetece sem dúvida dar o título da tradução portuguesa do livro ‘Animal Farm’, de George Orwell, a esta vitória de Donald Trump. Porque, respeito pela democracia à parte, este foi, indubitavelmente, o triunfo da América racista, xenófoba, misógina, ignorante e brutal, enfim, de todas as mais grosseiras características dos rednecks amantes de armas de fogo e que, em alguns casos, até constituem milícias armadas declaradamente anti-governo. Da América do Ku-Klux-Klan, da sobrevivência da antiga mentalidade esclavagista e anti-imigração, hipocritamente religiosa, como se existisse nela uma sombra sequer do Evangelho de Cristo. Da América onde os evangelistas da TV, fanáticos anti-evolucionistas, ainda defendem o ensino do criacionismo nas escolas, estando nós já bem entrados no século XXI, com tudo o que isso implica de progresso do conhecimento e da ciência.

As bolsas estão em queda um pouco por todo o mundo, mas também a crença de muitos num mundo melhor. Alguns, como o romancista Paul Auster, não se limitaram a declarar o seu desacordo com a hipótese de Trump presidente, confessaram-se mesmo assustadíssimos (scared out of my wits) com a possibilidade deste milionário desmiolado, malcriado, aldrabão, preconceituoso e sexista assumir o cargo mais poderoso do mundo. E tudo o que vem com ele. Trump passa agora a ser o comandante-em-chefe do exército mais forte do planeta, o detentor dos códigos das armas nucleares. Passa a ser o homem capaz de determinar o futuro de múltiplas minorias étnicas e religiosas nos EUA, passa a encarnar a esperança ingénua do povo americano em “tornar a América grande outra vez”, o que quer que isso queira dizer. A nós, soa a ameaça.

Os Estados Unidos da América perderam a oportunidade de se afirmar como nação progressista. A Barack Obama, o primeiro presidente negro da história dos EUA, homem inteligente, sólido e de uma persistência infinita face às imensas forças de bloqueio que contra ele se levantaram desde logo no senado e no congresso e o acompanharam durante todo o seu mandato, opondo-se às mais básicas e necessárias reformas do sistema social, como o Obamacare, sucede agora um indivíduo algo histérico e cheio de si mesmo, rico e plutocrata, uma anedota ambulante, inspiração para imensas jokes da parte de quem tem alguma educação ou apenas dois dedos de testa. Para trás ficou a possibilidade de fazer suceder ao primeiro presidente negro a primeira mulher presidente. E Hillary Clinton, mau grado todos os senãos, estava inquestionavelmente muito melhor apetrechada para governar a América do que Trump. Esta não é uma questão de esquerda ou de direita, do que seria mais politicamente correcto para os EUA no plano mundial ou mesmo no doméstico; é, sim, uma questão de extrema-direita. Hoje celebram as milícias, o Ku-Klux-Klan, todos os que não querem reconhecer que os imigrantes, mesmo os ilegais, construíram e continuam a construir a América. Hoje é a vitória dos supremacistas brancos, de Bíblia numa mão e arma de fogo na outra.

Depois do Brexit, faltava-nos apenas esta. Agora já não falta. Claro que agora é fácil dizer isto, mas sempre receei por este clímax. A voz de Trump, sem dizer nada, sem apresentar propostas concretas, fazendo afirmações de carroceiro como a de que quando gostava de uma mulher as agarrava pela rata (grab them by the pussy) ou de que se não fosse o pai da sua filha provavelmente estaria a sair com ela, apresentava-se mais sedutora aos ouvidos do povo americano do que a de Hillary Clinton. Coerente, competente e determinada, mesmo assim não conseguia ter metade do carisma do marido. Trump apresentava-se como mais sedutor para as massas ignorantes e descontentes.

Apesar do agastamento do cidadão de classe média com a classe política; apesar de todas as peculiaridades das oligarquias políticas norte-americanas, que fazem com que a presidência apenas seja acessível a campanhas fortemente apoiadas por lobbys com grande poder financeiro, tornando-a uma democracia distorcida; apesar de toda a desilusão com o rumo que a Europa toma hoje em dia, nada justifica a ascensão grotesca da extrema-direita no Ocidente nesta época senão um autêntico retrocesso civilizacional.

Hoje estamos de luto. Pela inteligência e pela decência.