Um olhar sobre a pessoa e a natureza: Madeira Film Festival 2015

of_horses_and_men

A partir do próximo dia 26 de Abril, o cinema independente internacional tem encontro marcado no Funchal. É a edição deste ano do Madeira Film Festival, um evento que em pouco tempo já conseguiu estabelecer uma reputação de qualidade. E, se há quem pense que se trata de acontecimento meramente elitista, caracterizado por filmes-paisagem, lentos e maçadores, desengane-se. O objectivo da iniciativa é enaltecer a biodiversidade da floresta laurissilva e projectar internacionalmente o nome da Madeira, e há uma clara ligação ao cinema independente que foque, em filme, documentário ou curta-metragem, a temática da Natureza, mas o Festival não se esgota aqui. A paisagem mais abordada é a própria alma humana, a forma como nos relacionamos com as problemáticas que se nos colocam e o mundo que nos rodeia. E exemplo disso são mesmo várias das películas apresentadas – não a concurso, porque o MFF não tem essa vertente competitiva – mas à apreciação do público.

Circulando entre o Reid’s e o Teatro Municipal Baltazar Dias, o MFF aproveita estes dois marcos arquitectónicos da Madeira; e escapou já a uma certa clausura no histórico hotel, que o poderia afastar da população local. Agora os filmes são exibidos no Teatro Municipal, uma sala que prima pela beleza e o conforto. Já não há desculpa!
Por outro lado, no programa do MFF contam-se também filmes mais ‘mainstream’, se assim poderão ser classificados apenas pela presença de actores mais conhecidos ou temáticas menos etéreas. A verdade é que, na generalidade, todos os filmes do Madeira Film Festival são interessantes e promovem a meditação sobre múltiplas temáticas candentes dos dias de hoje.
Oficialmente, o acontecimento decorre entre 27 de Abril e 3 de Maio, mas no dia 26, um domingo, a partir das 3 da tarde estará já em exibição no Teatro Municipal Baltazar Dias uma selecção de curtas-metragens, intitulada ‘On the Road’. Duas delas são da Madeira: ‘De mim’, de Carlos Melim, e ‘A Árvore de Pan’, de Aitken Pearson, uma das personalidades ligadas à organização do Festival. Duas outras curtas são dos Açores, e as restantes de realizadores de Portugal continental.

Programa social à parte, o MFF arranca de facto com a exibição do peculiar filme ‘Of Horses and Men’, pelo realizador Benedict Erlingsson. Trata-se, revelam os responsáveis do evento que junta no Funchal realizadores e outras personalidades ligadas à Sétima Arte, de uma tragicomédia que nos dá conta de episódios passados numa comunidade remota na Islândia, contando várias histórias da vida rural que reflectem a profunda ligação entre humanos e cavalos. O título, reminiscente da obra literária de John Steinbeck, ‘Of Mice and Men’ [‘Ratos e Homens’] já reflecte um pouco do humor que o realizador islandês verteu nesta produção, talvez herdado, como sugere o crítico Peter Bradshaw no jornal britânico ‘The Guardian’, de Lars von Trier, realizador com quem Erlingsson trabalhou, como actor, num filme de 2006 [‘The Boss of It All].
Bradshaw, aliás, não poupa elogios ao filme de abertura do MFF, filmado nos enormes espaços ao ar livre da Islândia, “uma história de amor sobre cavalos, com cavalos, quase como um filme mudo com palavras. Os cavalos são a linguagem que permite às personagens humanas falar uma com a outra”. E conclui afirmando que esta película “merece o seu estatuto de culto”.

Realizador será escoltado por cavalos e cavaleiros

Uma curiosidade engraçada a respeito deste filme é que a exibição do mesmo no Funchal contará com uma propositada e bem humorada encenação: o realizador, convidado do Festival, será conduzido num automóvel clássico do Belmond Reid’s Hotel, onde decorrerá uma recepção oficial até às 20h30 do dia 27, até ao Teatro Municipal Baltazar Dias, para a estreia do filme, às 21 horas – e será escoltado, no seu percurso, por cavalos e cavaleiros.

“Um cineasta para todas as estações”

Outro filme notável deste Festival é ‘Uma Vida Invisível’, do português Vítor Gonçalves: uma “exploração poética à memória e à tristeza”. Vagueando por um apartamento abandonado com quartos sombrios habitados por fantasmas, um homem tenta lembrar-se dos últimos dias de um amigo e da última vez que viu a mulher que amou. Um filme saudado pela crítica, por exemplo do jornal ‘Público’, pela opinião de Vasco Câmara, que considerou Vítor Gonçalves, aos 62 anos e após um longo interregno na sua carreira cinematográfica, “um cineasta para todas as estações”. Apresentada em vários festivais internacionais, como Roterdão ou Roma, esta obra debruça-se sobre a natureza mais profunda da alma humana.

Entre uma busca pessoal e as paisagens da Escócia
Entre uma busca pessoal e as paisagens da Escócia

‘Garnet’s Gold’, de Ed Perkins, é um relato curioso: após quase perder a vida numa caminhada, Garnet persuadiu-se de que o bastão de madeira que encontrou antes de ser resgatado é um marcador para uma grande fortuna escondida 300 anos antes e regressa para a encontrar. Uma busca por riqueza que acabará por ser eclipsada por uma procura mais melancólica por significado e inspiração de um homem maravilhosamente exuberante, e que ambiciona deixar a sua marca. O filme apresenta-nos cenários fantásticos das terras altas da Escócia. O ‘The Hollywood Reporter’ descreveu a demanda quixotesca de Garnet como um pretexto para o realizador dar a conhecer ao espectador as suas lucubrações filosóficas e metafísicas.
Já ‘Mother Europe’, de Petra Seliskar, é uma ‘road trip’ pela periferia da União Europeia, que nos mostra a Europa dos nossos dias, através do olhar de uma sábia criança viajada, que questiona a utilidade e finalidade das fronteiras.

‘Medeas’, do realizador Andrea Pallaoro, assume-se por outro lado como “uma ousadae lírica exploração da alienação e do desespero, através da observação íntima das vidas de uma família e suas relações entre si e com o ambiente que os rodeia. Sem julgamentos morais, sonda as fronteiras do comportamento humano e as distâncias que o ser humano é capaz de percorrer por amor e auto-preservação”. Também este filme mereceu as honras da crítica no ‘Hollywood Reporter’.

winter_in_the_blood
Em busca da esposa, da espingarda… ou de si próprio?

Por seu turno, ‘Winter in the Blood’, de Andrew Smith, reflecte a saga de um índio norte-americano do Montana, Virgil, que regressa um dia, ressacado e espancado, à sua casa na reserva, apenas para descobrir que a mulher o deixara, levando com ela a sua querida espingarda. “Partindo no seu encalço (talvez no da espingarda) inicia uma odisseia desenfreada de intrigas inebriadas e possivelmente imaginadas repletas de personagens misteriosas e intrigantes”. O New York Times chamou-lhe “um drama sobre o alcoolismo”, e não esqueçamos que, de facto, este é um dos problemas que mais afecta os índios norte-americanos. Uma obra à qual não falta compaixão, quer pelas feridas da infância, quer pela armadilha criada pelas origens étnicas.

Estes são os filmes de destaque do Festival, aqueles cujos realizadores marcarão presença na Madeira, participando em diversas iniciativas, entre as quais workshops.
Outros filmes merecedores de grande destaque, inclusive pela presença no grande écran de actores e actrizes bastante conhecidos(as), são os seguintes:

– ‘Under the Skin’, de Jonathan Blazer, com Scarlet Johansson, a história de um alienígena que assumiu a forma humana, um retrato real que mistura géneros como o ‘road movie’ e a ficção científica; o resultado, assinalável, é uma obra com grande presença visual e estilística. Este é um filme que vê o nosso mundo através dos olhos de alienígenas, e que esconde, em camadas mais profundas, uma perspicaz análise da nossa sociedade e civilização.

– ‘Night Moves’, de Kelly Reichardt, com Jesse Eisenberg e Dakota Fanning. O relato de um protesto radical por três ambientalistas, que querem fazer explodir uma barragem, símbolo de uma cultura industrial devoradora de recursos, e que eles odeiam. Permite uma meditação acerca da consequências do extremismo político, e questiona se convicções legítimas exigem ou não comportamento ilegal.

the_giver
Um filme que leva ao grande écran o notável romance distópico que introduziu muitos jovens à ficção científica

– ‘The Giver’, de Philip Noyce, com Jeff Bridges e Meryl Streep, narra a história de Jonas, escolhido para ser o Colector de Memórias numa comunidade onde todos são felizes. “Ao receber memórias do mundo como era dantes, aprende não só sobre o amor e família, mas sobre a dor, a guerra e todas as verdades infelizes indissociáveis do mundo. Confrontado com esta realidade, terá que tomar difíceis decisões que influenciarão a sua vida e a da comunidade”.

– ‘Tracks’, de John Curran, com Mia Wasikowska: a descrição da viagem de uma jovem, em 1977, pelo interior australiano.

act_of_killing

– ‘The Act of Killing’, de Joshua Oppenheimer: uma assustadora viagem àquilo que Hannah Arendt chamou ‘a banalidade do mal’, com um desafio a ex-líderes dos esquadrões da morte indonésios, para reencenar os assassinatos de 1965-66, um dos mais brutais genocídios do séc. XX.

– ‘Virunga’, de Orlando Von Eisendel, uma viagem fascinante ao Congo, um dos locais com mais biodiversidade na Terra e lar para os últimos gorilas da montanha: quando é descoberto petróleo sob o parque, um jornalista, uma ex-criança soldado, um tratador de gorilas órfãos e um conservacionista belga arriscam as vidas para protegê-lo das milícias, dos caçadores e das sombrias forças que pretendem dominar os recursos naturais daquele país africano.

O Madeira Film Festival deste ano conta também com a presença de vários músicos: entre eles, Iain McDonald, tocador de gaita-de-foles escocesa, que actuará na recepção e cocktail de abertura do evento, no Reid’s, entre as 18h30 e as 20 horas de 28 de Abril; Natalie Gelman, nova-iorquina, cantautora de folk alternativo, que actuará também no Reid’s a 30 de Abril, pelas 21 horas, antes da exibição do espectáculo ‘As Árvores Morrem de Pé’, pelo Ballet Teatro Paz, dos Açores; Louisa Connoly-Burnham, actriz, e Lia Hatzakis, cantautora e guitarrista, que actuarão no Afterparty no Casino da Madeira, 1 de Maio, à meia-noite; no mesmo dia, haverá um espectáculo aéreo das Flaunt Girls, dos EUA, que certamente agradará particularmente ao público masculino: as mesmas misturam a actuação acrobática de natureza circense à performance típica de cabaret. Os bilhetes podem ser adquiridos no Casino.

Já no dia 2 de Maio, actuarão as cantoras Lori Watson e Fiona Black, no Belmond Reid’s Palace, pelas 21 horas.

A dança também está presente no MFF, através do grupo Dançando com a Diferença, que apresentará a 27 de Abril a peça ‘Dez mil seres’, de Clara Andermatt, com a presença da coreógrafa, no cenário paradisíaco do Fanal, pelas 16h30.
Finalmente, a 30 de Abril, o grupo de dança contemporânea Ballet Teatro Paz, dos Açores, apresentará, como já acima referimos, a peça ‘As Árvores Morrem de Pé’, com coreografia de Milagres Paz.
Além destas iniciativas, ainda há outras, como workshops e um projecto educativo que, em articulação com a Secretaria Regional da Educação, promove um concurso para alunos do 3º ciclo e jovens e adultos com necessidades especiais, nas áreas de melhor filme (vídeo), melhor fotografia, melhor ‘estória’ e melhor storyboard, sobre a temática ‘A Natureza na Minha Cidade’. Na globalidade, este é projecto multifacetado que não devemos deixar de lado porque, por vezes, o programa social tende a ofuscar um pouco os próprios filmes, que são a verdadeira essência do Festival.