Minamata e os «monstros»

Trago de novo este assunto à beira das minhas preocupações. Nestes últimos dias, desde o tempo incerto dos sobressaltos, da estranheza dos acontecimentos inesperados que nos vêm ameaçando, folheio alguns livros à procura de lenitivos para um certo e indesejado amargo que vou sentindo e procuro diluir nas pequenas rotinas: Preparar o pequeno almoço, ir ao mercado, ou lavar a varanda marcada pela chuva e o pó durante a madrugada. Às vezes fico a olhar uma gaivota desgarrada. Dantes elas subiam do mar, as gaivotas, e cruzavam a ribeira a caminho da serra. Agora habituaram-se a pousar na grade da varanda e ficam às voltas de telhado em telhado, como se tivessem perdido o rumo.  São bem-vindas.  Trazem o mar mais próximo e ajudam a  espantar alguns dos males que me afrontam. Hoje o dia escureceu e há uma neblina a empalidecer os verdes da paisagem, o outono chegou…e esta tristeza que ensombra o mundo…!

Não vou falar outra vez da guerra, se bem que ela tenha recrudescido e as notícias sejam alarmantes. Vou sim, recordando a dolorosa história de Minamata, abrir um livro que me saltou aos olhos e ler ao acaso um poema terrível, porque o desastre de Minamata  e outros semelhantes são tão funestos como o ódio armado. Afinal, o lenitivo que eu procurava acabou nas páginas dolorosas dum livro maldito. O poema foi escrito por Primo Levi um judeu sobrevivente de Auschwitz: «Vós que viveis tranquilos/nas vossas casas aquecidas/vós que à noite, em casa, encontrais/ comida quente e rostos amigos: /Considerai se isto é um homem,/ quem trabalha na lama/ quem não conhece a paz/quem luta por uma côdea de pão/quem morre por um sim ou por um não./Considerai se isto é uma mulher/ sem cabelo e sem nome/ sem força sequer para se lembrar/os olhos vazios, o ventre gélido/como a rã no Inverno./ Considerai que isto aconteceu;/Recomendo-vos estas palavras/ gravai-as no vosso coração/quando estais em casa ou andais pela rua/ ao deitar-vos e ao levantar-vos/repeti-as aos vossos filhos/ senão que se desfaça a vossa casa/ que os vossos filhos vos virem a cara ….».

Uma revolta que despoleta a violência das palavras, uma dor que não se compadece, uma vítima como tantas outras que não se contém, porque não pode calar o que é impossível de esquecer.

E tudo se repete em várias frentes, e o nosso contentamento soa mal em meio de certos factos: Os excessos cometidos por certos estilos de vida, o gosto exacerbado pelo consumo, a obsessão incontrolada do lucro, a exposição agressiva da riqueza, são realidades que chocam a sensibilidade dos mais conscientes sobre o sentido da vida.

As cidades continuam a exorbitar o seu crescimento, a mergulhar cada vez mais na sombra os espaços urbanos, a sobrepor-se à excelência das montanhas, sinal evidente duma reprovável sofreguidão. E quando se vive numa pequena cidade, numa ilha cuja orografia se impõe pela grandeza das suas montanhas e vales profundos, o concreto armado terá que adoptar medidas razoáveis para a criação das suas volumetrias, a fim de evitar a proliferação de certos «monstros» que se vão avistando, mês após mês, escondendo a moldura  verde e o horizonte azul que identifica a paisagem, toldando a vista dos seus habitantes, os olhos que reclamam por luz, natureza e harmonia. Porque o sol é fonte de vida e a circulação do ar precisa de espaço livre para chegar incólume a quem o respira. O betão é um elemento altamente poluidor e o seu excesso, mais cedo ou mais tarde, com a sucessiva degradação dos prédios, poderá ter reflexos na saúde das populações. Os bairros habitacionais onde os prédios se avolumam e «arranham céu e montanha», precisam de respirar, de expor-se à luz, de oferecer espaço e atmosfera aos seus habitantes. Estudos estatísticos criteriosos recomendam o reaproveitamento  de edifícios abandonados e mesmo de casas pequenas espalhadas pelos territórios, em vez da construção desenfreada de novos empreendimentos, muitas vezes desaproveitados por falta de quem os procure. Há vários apartamentos ainda devolutos detectados em determinadas urbanizações e pequenos complexos comerciais  completamente vazios. Tudo isto configura também um desperdício de capital.

Quem pensa nestas questões ? Quem não concorda com elas ? Quem se opõe a estas verdades ?

São perguntas pertinentes que, à falta de outros circunstantes, atiro às gaivotas. Do alto dos telhados  que me circundam , exprimem a sua perplexidade rodando  a cabeça ora a norte, ora a sul e ficam silenciosas, testemunhas do meu espanto perante um teratismo de betão que foi crescendo, crescendo, crescendo, e alargando, até roubar-me a vista da montanha que me apaziguava a alma e alegrava os olhos. Ó ladrão,ladrão – assim diz a cantiga, toada triste de quem perdeu um bem –Ó ladrão ladrão, que roubaste a minha amada !».