A exposição de José Zyberchema em Machico

Thanatos

“Os cemitérios também morrem”

 

Contexto

José Zyberchema inaugurou, no “Solar do Ribeirinho”, em Machico, uma exposição foto e videográfica intitulada “O último jardim”. Trata-se, segundo o autor, da primeira de uma série de registos municipais relativa aos cemitérios e respectivas sepulturas. Ainda de acordo com o autor, estes registos evidenciam quer o cuidado, quer o abandono em que se encontram esses lugares.

 

A morte como legado e património

Um dos livros que mais me terá marcado, na década de 70, foi Ensaios sobre a História da Morte no Ocidente – da Idade média aos nossos dias, de Philippe Ariès. Trata-se de uma obra que recupera o tema da morte, na cultura ocidental e que a institui como centralidade no âmbito da Literatura e das Ciências Sociais e Humanas. Poderíamos, com algum risco, ensaiar um resumo e referir que se trata da evolução da morte como ato eminentemente público, “presidido” e, de certa forma, orientado pelo moribundo, até à morte privada, anónima, solitária e, até, desprezada. A solenidade do momento da morte, o luto que se iniciava através de cânticos, orações e expressões de choro, deu lugar à repressão dessas manifestações, hoje socialmente desencorajadas e, até, desconsideradas. A progressiva ocultação do ritual da despedida, a partida solitária nos hospitais ou lares, modificou, de forma inexorável, a relação dos seres humanos com o seu fim (e continuo a situar-me no plano ocidental, o de P. Ariès). O autor enuncia o percurso histórico do ritual funerário em direção ao seu tabu. A título meramente ilustrativo, recorde-se que, em plena Idade Média, segundo o estudo deste autor, os cemitérios eram locais de socialização, de comércio e até de espectáculo (dança, por exemplo).

A História da morte, dos seus rituais e do modo como os vivos entendem perpetuar a memória dos mortos inscreve-se, então, na História da Humanidade, como uma das mais relevantes manifestações culturais dos povos.

Os ritos e os lugares funerários como expressão cultural

Alguns cemitérios, e cito como exemplo os conhecidos “Père-Lachaise” e “Montparnasse”, em Paris, constituem autênticos compêndios de História e são (quase) tão visitados como a “Torre Eiffel” ou o “Museu do Louvre”. Noutras partes do mundo, monumentos fúnebres como as “Pirâmides do Egipto” ou o “Taj Mahal”, na Índia, tornam o património funerário dos respectivos países em locais obrigatórios de visita turística. Assim, similarmente, e uma vez mais a título meramente exemplificativo, o cemitério de Montjuic, em Barcelona, qual galeria de Arte e de sublimidade arquitectónica. Aliás, quem já se aventurou pelos roteiros turísticos desta cidade, terá encontrado as chamadas “Rutes de Montjuic” que consubstanciam três opções de visita pelos cemitérios locais: a histórica, a estética e a arquitectónica. Através destas referências, escassas, mas talvez mais conhecidas, trago à escrita alguns registos elucidativos da importância do património funerário e das suas dimensões plurais.

Enquanto espaços culturais, os cemitérios recolhem as mais diversas tentativas de conservar a identidade da pessoa falecida e, dessa forma, manter a sua memória. A sua História (remeto para os exemplos acima referidos) visa, ainda, imortalizar diferenças que possam escapar à universalidade do estado que ali os conduz. Campas especiais, arranjos florais exuberantes, capelas, elementos esculturais, ainda observáveis em muitos cemitérios, seriam um modo de assegurar, post mortem, um estatuto e um poder dos quais a morte, enquanto sentença universal, os liberta, visando contrariar, desse modo, o anonimato dos restos mortais.

A arquitectura e a estética dos lugares funerários indica, então, o modo como as diferentes religiões, manifestações espirituais ou de laicidade expressam a sua relação com a morte. Assim sendo, podemos sintetizar referindo que o modo como as sociedades se exprimem, nas mais diversas formas, a crescente “laicização” dos momentos fúnebres e dos espaços funerários, assim como a generalização de alguns procedimentos funerários, como por exemplo o da cremação (acolhida pela religião católica há relativamente pouco tempo), contribuem para uma mudança de paradigma societal no que à morte diz respeito.

Não são iguais os cemitérios consoante os locais ou as religiões. Até a natureza e a geografia condicionam e determinam as práticas funerárias. A complexidade dos processos sociais e culturais que estruturam e organizam o modo como os vivos determinam e organizam os processos funerários instigam, desde há muito, uma pluralidade de áreas científicas ao seu estudo. Refira-se, uma vez mais como exemplo, que uma das áreas específicas da gestão de municípios, em muitos países europeus, é a do urbanismo funerário.

Em alguns países, têm sido desenvolvidos estudos e práticas que associam a esta área a da Psicologia. Resultado dos mesmos, têm sido feitas recomendações às autarquias no sentido da construção/reestruturação de espaços que contemplem áreas onde as pessoas possam sentar-se, recolher-se em meditação e/ou oração. A manutenção e proliferação de jardins é um dos pedidos mais frequentes. Os rituais do luto seriam, assim, respeitados no quadro do acesso mais acolhedor aos cemitérios, obviando a dor da morte e da separação. Na Alemanha, por exemplo, a empresa de fundição de Arte, “Strassacker”, lançou um projecto, em curso desde 2009, designado “Orte, die gut tun” (os lugares de bem-estar) que tem como objectivo transformar a cultura do luto em benefício das pessoas implicadas, no sentido de encontrar meios de “boa hospitalidade” nos espaços de memória dos mortos. É um conceito que se inscreve na linha do que hoje se designa como “os cemitérios do futuro” e que já inclui, para além das preocupações humanistas e espirituais, as forçosas dimensões sanitárias destes tempos.

 

Dos cemitérios como exemplos de arte pública à meta-arte

Em 2018, no centro de Bruxelas, mais propriamente em Saint-Géry, alguns fotógrafos contemporâneos, internacionalmente conhecidos, participaram numa exposição fotográfica, em grande formato, que exibia registos de monumentos e cortejos funerários, cerimónias fúnebres e/ou da memória, imagens de pessoal afecto aos trabalhos específicos dos cemitérios, assim como fotos artísticas ilustrando atitudes face aos monumentos e/ou espaços citados. Foram, ainda, exibidas réplicas dos baixos-relevos mais comuns encontrados nos cemitérios fotografados. Os símbolos relacionados com a morte, as cores, os materiais, os tipos de flores foram, assim, apresentados como manifestações culturais dos povos, das suas crenças, religiões e/ou formas de pensar. Um cemitério é, igualmente, o local onde – como referimos – se manifestam hierarquias sociais e estatutos de poder que, aos vivos, interessa fazer perdurar. Recorde-se o caso dos Panteões, as sepulturas nas Igrejas e/ou outros monumentos históricos, etc.

Em França, tem sido discutida, nestes últimos anos, ao nível institucional parlamentar e governamental, a importância dos cemitérios enquanto “lugares de arte, de história e de memória” (Alain Joyaudet). O então Ministro da Cultura (2018) Franck Riester, manifestou a sua apreensão pelo “estado de empobrecimento histórico e arquitectural do património funerário francês”.

Talvez não seja despicienda a referência à “Rota Europeia dos Cemitérios” e à “Associação dos cemitérios europeus mais significativos” (que existe há mais de vinte anos) e que se destina a “promover os cemitérios europeus como parte fundamental da herança da humanidade” e, igualmente, “suscitar o interesse das populações relativamente a esse legado”.

Na Madeira, poderíamos referir a brilhante recuperação do Cemitério judaico apenas conseguida através dos muitos esforços de mecenas privados internacionais que quiseram preservar a memória dos judeus que foram acolhidos na Região. Esta iniciativa evitou a perda de um importante património histórico da ilha e das migrações mundiais.

 

A exposição “O último jardim”

A mostra recolhe, como referido no início, alguns registos fotográficos (também compilados em vídeo) de cemitérios e respectivas sepulturas, no Concelho de Machico. Expõe fotos relativas a espaços cuidados e floridos, assim como outros que o autor designou como abandonados. É isenta de qualquer registo textual, quer ao nível de legendas ou sequer de catálogo. Essa parece-me, nesse quadro específico, uma lacuna significante do ponto de vista da curadoria da mesma e que, em meu entender, a empobrece. É imperativa uma ekphrasis.

A iniciativa de José Zyberchema, não sendo original, é pioneira nesta Região e pode contribuir para desencadear reflexão crítica sobre esta temática cultural de tão alto relevo quanto à preservação do património material e imaterial do arquipélago. Pode, ainda, contribuir para assessorar os municípios no sentido de promover acções concretas conducentes à preservação e à valorização destes espaços de memória. Nesse caso, devem colaborar equipas multidisciplinares que congreguem historiadores, arquitectos, geógrafos e outros especialistas na área da Cultura. Durante a visita à exposição, um dos presentes referiu que “os cemitérios também morrem”. Esta exposição poderá, ainda, contribuir para que não sejam o “último jardim”, mas sim a certeza renovada do respeito e da preservação da memória. A degradação do património construído, a sua destruição, é um sinal de aviltamento da Cultura e do legado material e imaterial dos povos. No arquipélago da Madeira existem alguns exemplos deste aviltamento e da falta de sinalização física, com informação histórica, em locais outrora cemitérios. É importante que não se ceda a uma certa “talibanização” do património porque, desse modo, estaremos não só a comprometer o nosso passado, mas sobretudo o nosso futuro.