Ribeira Brava de João França

Jornalista e escritor, João França nasceu, em 1908, no Funchal e faleceu, em 1996, em Lisboa, para onde foi residir em 1938. Reconhecido pelo trabalho que desenvolveu na imprensa (na ilha, colaborou com o Comércio do Funchal, Re-Nhau-Nhau, entre outros; no continente, firmou a sua carreira no jornal O Século), João França destaca-se, também, na ficção (romance e conto), no teatro, na poesia e na crónica.

Homem da ilha e do mundo, deixa-nos um legado relevante no campo do património cultural e literário do século XX. Os investigadores têm ao seu dispor, no Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, o espólio de João França doado, em 2016, pelo Sr. Ivo Sinfrónio Martins, sobrinho e herdeiro do escritor. Chamamos a atenção para a informação sobre a “Relação do Acervo João França”, da autoria de Fátima Barros e Helena Carvalho, que se encontra online.

A obra literária do escritor reaviva-se com as publicações ou reedições mais recentes e, em boa hora, se recupera a escrita do autor: Uma Família Madeirense foi republicada, em 2019, pela Imprensa Académica; Dramaturgia de João França e Uma Tragédia Portuguesa vieram a lume pela Editora Madeirense em 2016 e 2017, respetivamente; a reedição de António e Isabel do Arco da Calheta está prevista para 2021, sob a chancela da Imprensa Académica.

Em Ribeira Brava, livro publicado pela primeira vez em 1954, com um prefácio de Aquilino Ribeiro, a arte do conto de João França acentua a modernidade da sua escrita. Congregando tradição e modernidade, e ancorando esse gesto na dialética do contar/cantar e descrever/representar, o autor parece querer abarcar as suas inúmeras facetas: a de escritor, a de jornalista, a de dramaturgo e a de ator.

Enquadrado numa diversidade de situações narrativas, as histórias que compõem Ribeira Brava interligam-se através de fios lógicos que se consubstanciam no topos da superstição, da loucura, da obstinação, do duplo, do insólito e do bizarro, quer em atmosferas rurais, quer em meios citadinos.

Os seis contos incluídos em Ribeira Brava não se resumem a uma exposição linear. Se “Ribeira Brava” e “A Árvore Maldita” se aproximam da feitura clássica de contar as dissonâncias da ilha e do indivíduo, a leitura integral do livro vai realçar o cunho próprio do escritor. As outras ficções são engendradas numa forma voluntariamente ‘desarrumada’ de (re)contar ‘estórias’. O conto “Chão de Areia” revela a construção dual da imagem da mulher que a ficção protagonizou, muito embora a narrativa saliente a frivolidade do protagonista. Em “Camisas de Lona”, através da paródia, o texto que subverte a mensagem sagrada da Avé-Maria sublinha o humor que atravessa a narrativa. Em “Selma”, uma mulher atraente e cruel vai protagonizar um infeliz jogo de sedução, colocando termo numa amizade de longa data. Em “O Caso de Paulo Gerardo”, a(s) voz(es) do texto ensaiam acontecimentos adicionais à trama principal, de modo a justificar um crime ocorrido num hotel do Funchal.

Sob o signo do espaço insular, mas também da mundividência cosmopolita, o leitor não encontrará meras alusões aos (des)encantos da ilha. Em cenários de assombro e de inquietação, através de um jogo bem instruído de construção e desconstrução da arte do conto, o leitor deparar-se-á com uma interessante forma de fazer conviver o local e o global.

Regra geral, o leitor conhece as narrativas inseridas no livro O Emigrante. O conto com o título epónimo foi, aliás, levado ao palco pelo Teatro Experimental do Funchal (ATEF) com o título “Quase Por Acaso Um Emigrante”. Conhece os romances históricos de fundação insular: A Ilha e o Tempo (1972) e António e Isabel do Arco da Calheta (1985). Uma Família Madeirense (2005; 2ªa ed. 2019), a narrativa que, ao jeito da saga familiar, desvenda episódios mais recentes da História da Madeira, deve ter interpelado a sua atenção leitora. O livro que se desdobra em torno da emigração ‘a salto’ para França, significativamente intitulado Uma Tragédia Portuguesa (ed. 2017), pode ser o resultado de uma leitura reveladora das dissonâncias da vida.

Em Ribeira Brava, João França opta por um certo realismo mágico, pela desconstrução paródica e pela hibridização textual, no seu intuito crítico e denunciador. Sob o signo da decadência social e cultural, mas também da modernidade na arte de contar, os experimentos surrealizantes e o caráter multimodal da sua escrita fazem de Ribeira Brava um livro incontornável para a compreensão da obra do autor.

Topónimo de um lugar da Ilha da Madeira, o conto “Ribeira Brava” é, simultaneamente, o espelho refratário dos traços semânticos das travessias condicionadas e acorrentadas a identidade problemáticas.  Súmula de contrariedades e de contrastes, o conto simboliza as grafias agrestes e torrenciais da vida que as restantes narrativas do livro vêm acentuar. A escrita poliédrica do autor, que conjuga discursos e linguagens diversas, revela uma abordagem moderna e pulverizada e, portanto, pouco habitual do conto de recorte tradicional. Na promessa de brevidade e de contração da escrita do conto, surgem, pela mão de João França, identidades intensas e narrativas, deveras, apelativas.

_____

*Leonor Martins Coelho

Docente da Faculdade de Artes e Humanidades da Universidade da Madeira

Investigadora do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa (Cluster “Viagem e Utopia – Grupo LOCUS)