Há 15 dias, nos dias 29 de Fevereiro e 1 de Março corrente, quando o coronavírus ocupava já as atenções dos media, dois jornais nacionais de referência, o semanário “Expresso” e o diário “Público”, publicaram alguns textos em que os seus autores lançavam o olhar sobre acontecimentos não menos preocupantes, mas que certamente escapam ao radar de vastíssimas camadas de cidadãos, habitantes deste nosso planeta chamado Terra.
No semanário fundado por Francisco Pinto Balsemão, a jornalista Cristina Peres, da respectiva secção internacional, iniciava o artigo – que intitulou “Extremismos: Denegrir para reinar está na ordem do dia”- com a referência a um episódio ocorrido no Carnaval de Campo de Criptana (uma terriola situada a uns 40 quilómetros da capital espanhola e que não conta com mais de 13 mil habitantes), que “contou este ano com um desfile encabeçado por oficiais nazis, seguidos de carro alegórico em forma de comboio com chaminés de forno crematório e por uma procissão de dançarinas-prisioneiras ostentando borrões de tinta vermelha sobre o coração a agitar bandeiras com a estrela de David”. Cristina Peres acrescenta que “o entusiasmo perante o desfile não era esfusiante, porém também não havia sinal de incómodo” por ter sido quebrado “um tabu de sete décadas”.
No “Público”, por seu turno, Teresa de Sousa, que há 30 anos acompanha a política internacional nas páginas daquele diário, escrevia um texto, com o título “Há um outro vírus a infectar a Europa”, iniciando-o precisamente com a alusão a um outro desfile de Carnaval, desta vez na cidade de Aalst (Flandres), que “resolveu reincidir numa estranha demonstração de antisemitismo, escolhendo como figura principal do desfile de Carnaval a caricatura do velho usurário judeu, de longas barbas e nariz adunco, suportada por um corpo de insecto”. Reincidiu, recorda Teresa de Sousa, “porque, no ano passado, ao escolher o mesmo tema para as suas famosas festas de Carnaval, cuja tradição remonta ao século XV, viu a UNESCO suspender a classificação de Património Cultural Imaterial da Humanidade, atribuída à cidade”.
O episódio ocorrido em Espanha originou um veemente protesto feito pela embaixada de Israel em Madrid. Já na Bélgica, o presidente da Câmara de Aalst justificou a escolha ”por ser a favor da liberdade de expressão e do direito a gozar com toda a gente”.
De resto, “em Antuérpia, não houve corso dedicado aos judeus, mas muita gente resolveu envergar o mesmo disfarce carnavalesco, alegadamente para contestar a decisão da UNESCO. «É a resposta a quem se mete com Aalst»”. Cidade, em que, em 2013, o corso de Carnaval incluiu representações dos SS nazis. Tudo justificado com a tradição da cidade se assumir como “a capital do humor e da
sátira”. Daí que não surpreenda que uma sondagem recente realizada pela Anti-Defamation League (Nova Iorque) tenha revelado que 24% dos inquiridos belgas tinham “atitudes antisemitas”.
Teresa de Sousa alude depois com profundidade à situação que se verifica na Alemanha, a braços com “uma profunda crise política desencadeada pela emergência de um partido de extrema-direita nacionalista e xenófobo que é hoje a terceira força no Bundestag” (o
parlamento alemão), referindo que “o ódio racial é um veneno que alastra com enorme facilidade, como não se cansa de avisar Angela Merkel” (a ainda chanceler alemã) e conclui que “a ideia da Alemanha também como vítima ganha terreno, como se viu recentemente no aniversário dos bombardeamentos de Dresden pela aviação aliada”.
Nesse mesmo domingo (1 de Março), também no “Público”, o seu fundador e 1º director, o madeirense Vicente Jorge Silva debruça-se sobre o que denomina “os vírus e as quarentenas do mundo”, escrevendo a dado passo: “O que provoca o isolamento ou o exílio
forçados de tanta gente, da China à Itália, sugere outras situações de quarentena não sanitária mas cívica e política, em que os cidadãos perdem o controlo sobre as suas vidas, abdicam dos seus direitos e se submetem, por vezes voluntariamente e até por adesão militante, a diversas formas de autoritarismo e opressão. Nunca como agora neste século assistimos em simultâneo
ao cruzamento de tantas tendências degenerativas do estado de direito e das liberdades individuais, a estados de guerra e extermínio tão cruéis e impensáveis como aquele que se verifica hoje em Idlib, na Síria – um autêntico caso de quarentena civilizacional -, e à impotência ou demissão dos Estados e organizações internacionais perante tais calamidades (com a Rússia apoiada pela China a vetar, na ONU, qualquer ajuda humanitária aos sírios em fuga, ou a Europa limitando-se a um protesto epistolar de catorze ministros dos Negócios Estrangeiros) ”.
Uma realidade tanto mais grave porque, como acrescenta Vicente Jorge Silva, “vivemos no tempo das chamadas «democracias iliberais», da concentração do poder nas mãos de um homem só nos países mais poderosos e populosos do mundo (China, Rússia, Índia, mas também Estados Unidos), dos movimentos xenófobos e inspirados pelo ódio ao outro (a nível do próprio Estado, como acontece com a discriminação feroz dos muçulmanos na Índia do hindu radical Narendra Modi).Como assinalava recentemente Alain Frachon no Le Monde (diário francês), Trump, Xi Xinping, Putin e Modi «não acreditam senão nas relações de força. O Americano, o
Chinês, o Russo e o Indiano partilham esta convicção: o político leva a melhor sobre o direito». No já citado artigo do “Expresso”, Cristina Peres questiona: “o que se passou para se ter tornado «aceitável» o que era impensável até há pouco? O que permitiu que as narrativas xenófobas e racistas tivessem voltado à «normalidade» do discurso? (…) Que poder têm os cidadãos perante os partidos políticos que elegeram em democracia que depois usam os mandatos e o poder delegado para destruírem as instituições e os procedimentos democráticos?”.
Convém não esquecer, como se pode ler no mesmo texto, que a insatisfação geral com a democracia tem aumentado ao longo dos últimos 50 anos, em particular nas democracias desenvolvidas, e os dados referentes a 2019 representam o nível mais alto de
descontentamento a nível global. E, segundo o relatório “Satisfação Global com a Democracia 2020”, a baixa apreciação das democracias decorre de acontecimentos como choques económicos, escândalos de corrupção e crises políticas e afecta em particular países como os Estados Unidos, Brasil, México, Reino Unido, Japão, Espanha e Grécia. Enquanto, em contracorrente estão pequenas democracias de alto rendimento, como a Suíça, Dinamarca, Noruega, Holanda e Luxemburgo, cujos cidadãos demonstram uma cada vez maior confiança nas suas instituições.
O facto é que há cada vez mais governos em que impera a lógica do “Quero, Posso e Mando!”. Em que, como sublinha Alain Frachon, “quem ganha as eleições torna-se proprietário do Estado e submete à sua pessoa todas as instituições públicas”.
Na Europa há dois governos em que essa prática é particularmente evidente. Trata-se da Hungria e da Polónia, com a particularidade de terem integrado o denominado Pacto de Varsóvia e terem estado por conseguinte subjugados durante décadas aos ditames da antiga União Soviética. Num caso e noutro a hostilidade aos imigrantes foi erigida como principal bandeira política – na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán classifica a imigração como “o veneno da Europa” e na Polónia, o seu homólogo Jaroslaw Kaczynski assume publicamente que os migrantes “espalham parasitas e protozoários”. Simultaneamente, a liberdade de expressão está comprometida, foram introduzidas alterações à lei eleitoral que serão difíceis de reverter e instalou-se a perseguição à magistratura judicial.
Em declarações ao “Expresso” Michael Meyer-Resende, director-executivo da ONG de defesa da Democracia Democracy Reporting International é peremptório:”as democracias hoje em dia não desaparecem por golpe militar, mas porque os partidos eleitos pelos cidadãos alteram as leis a seu favor”. No jornal britânico “Financial Times” o colunista Martin Wolf admite que uma tal deriva possa ocorrer também nos próprios Estados Unidos:”É difícil exagerar a ameaça que representaria uma reeleição de Trump para o jogo dos poderes e contrapoderes na América”.
Não se deve por isso desvalorizar o perigo que representa o discurso populista, mesmo em países como Portugal onde a sua expressão eleitoral é muito baixa. Até porque como sublinha Meyer-Resende “há um guião para os partidos de extrema-direita que querem crescer.
A via é a provocação. Ao fazê-lo, conseguem atrair a atenção dos meios de comunicação social e, com isso, muita publicidade gratuita”. André Ventura está aí para o provar! Como faz sentido que questionemos, tal como Teresa de Sousa, se “os velhos demónios
estão de regresso à Europa?”. Uma pergunta a que responde nestes termos: “ (…) As manifestações de racismo e de intolerância ainda se manifestam principalmente contra as comunidades islâmicas (…) O que sabemos hoje é que o que há de comum a todas as formas de anti-semitismo e de xenofobia é o mesmo vírus do nacionalismo, que regressou à Europa para cumprir a profecia de Miterrand e de Kohl: «O nacionalismo é a guerra». Ou seja, a violência, a intolerância, o racismo”.
O Covid-19, em menos de três meses, já matou mais de 4 mil pessoas. É terrível, mas estamos muito longe da mortalidade provocada pelas pestes medievais. Por exemplo, a peste negra que em meados do século XIV assolou a Europa acabou com a vida de milhões de pessoas.
Naturalmente, compreende-se a preocupação dos cidadãos, dos governos, da Organização Mundial de Saúde. Mas dispensa-se o medo, o pânico colectivo. Na medida em que, normalmente, o medo paralisa a acção. E como alertava, no “Público” de 29 de Fevereiro, o jornalista Jorge Almeida Fernandes “o maior risco é sempre o «contágio emotivo», que provoca comportamentos de insegurança e, ao mesmo tempo, de intolerância e de racismo”.
Em Milão e Génova, na Itália, antes mesmo de ser declarada a quarentena, “surgiu inclusive uma «psicose da fome» e as famílias acumularam em casa quantidades inauditas de água e de alimentos de longa duração. Poderão viver anos a consumir as conservas de atum que compraram”. Por sua vez, o governador da Sicília avisou os habitantes do Norte que não são bem-vindos no Sul. E na Austrália, como referiu Clara Ferreira Alves na sua coluna no “Expresso” de 7 de Março corrente, as pessoas desataram “a açambarcar papel higiénico. Nos supermercados, o papel higiénico foi racionado e quando chegava dos fornecedores era logo arrebanhado”.
Muito mais grave foi, contudo, o que se verificou com uma estudante de HongKong que “foi tratada como uma leprosa em Itália. As pessoas afastaram-se dela, disseram-lhe para se colocar imediatamente em quarentena, deixar de aparecer em público, usar máscara e, de um modo geral, ir morrer longe. Por causa de uns olhos asiáticos”.
Mas, não menos preocupante é o mote que dá corpo ao texto de Clara Ferreira Alves, o “apontar o dedo aos media” que considera “uma das formas primitivas de atacar esta crise”.
Constatando algures: “Só falta dizer que os media foram os responsáveis pela criação do virús em laboratório” e assumindo que “os «jornais sérios», nem têm sido muito alarmistas e certamente não têm sido os autores das fake news, memes, vídeos e conspirações virais que contaminam a informação, circulam nas redes sociais e são disseminados pelas mesmas pessoas que estendem o dedinho”.
No Brasil é o próprio presidente Jair Bolsonaro que conduz uma guerra quotidiana contra os jornalistas que identifica como incómodos. Que é amplificada por autênticas milícias digitais que apoiam o governo. Ao ponto do Observatório de Imprensa da Ordem dos Advogados do país classificá-los como “massacres virtuais”.
Em “As origens do totalitarismo” Hannah Arendt escreveu: “O súbdito ideal do poder totalitário não é o nazi convicto nem o comunista convicto, mas as pessoas para quem a distinção entre facto e ficção e a distinção entre verdadeiro e falso já não existem”.
O que, apesar de tudo, nos permite poder sentir alguma esperança no meio do caos é constatar que há quem mantenha a lucidez que importa que possa prevalecer. Fiquem com a parte final da carta dirigida aos alunos pelo presidente do Liceo Volta de Milão, no momento em que as aulas foram suspensas, reproduzida por Jorge Almeida Fernandes, no artigo no “Público” a que fizemos referência: ”Um dos maiores riscos em situações deste género é o envenenamento da vida social e das relações humanas, a barbarização da vida civil. O instinto atávico quando nos sentimos ameaçados por um inimigo invisível é vê-lo por toda a parte, o
perigo é olhar os nossos semelhantes como uma ameaça, como um potencial agressor. Ao contrário das epidemias dos séculos XIV e XVIII (em Milão), temos do nosso lado a medicina moderna, e acreditai que não é pouco, os seus progressos, as suas certezas. Usemos o pensamento racional de que ela é filha para preservar o bem mais precioso que temos, o nosso tecido social, a nossa humanidade. Se não o conseguirmos fazer, a peste terá verdadeiramente vencido”.
*por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Post-Scriptum: 1) Corrupção: Como se já não bastassem os escândalos que envolvem políticos, empresários e banqueiros chegou agora a vez da magistratura. De facto, como é que é possível confiar num sector fundamental como a justiça, sabendo que a investigação do Conselho Superior de Magistratura revela que centenas de processos foram atribuídos manualmente na
Relação de Lisboa nos últimos 15 anos?
2) Donos Disto Tudo: Com as mudanças anunciadas no capital social da empresa proprietária do “Diário de Notícias” local, a versão regional dos DDT estende os seus tentáculos a mais um sector, o da comunicação social, acentuando-se a disputa entre os AFA e os Sousas. O que significa que há negócios e interesses que não merecerão a atenção nem do “JM” nem do “DN”.
3) Lastro: Irresponsabilidade é o mínimo que se pode dizer do que se sabe do dossier das dívidas e prescrições no Instituto de Segurança Social da Madeira. Só possível porque, pelos vistos, o processo executivo funcionava à balda. Sem que a respectiva tutela (presidência do ISSM e titulares da pasta governamental) tivessem prestado a atenção devida. Numa demonstração de que “o pessoal do carro preto” se esteve nas tintas para os dinheiros públicos. Vá lá que, num caso de polícia, há alguém que vai parar à “choldra”!
4) Sugestão: Com a ameaça do coronavírus à porta, e continuando o Sesaram sem director clínico, o inquilino da Quinta das Angústias vai repetindo que não há “stress”. Não se sabendo se a disponibilidade manifestada pelo ex-titular da unidade de medicina nuclear está a ser equacionada, que tal pensar na solução que, no século passado, o saudoso Dr. Aníbal Faria sarcasticamente preconizou de instalar uma cerca em volta da Ilha?!.
5) Conselhos: A criatura quebrou o silêncio para se declarar solidário com os médicos que contestaram o demissionário director clínico. Papagueando que se trata de uma questão ética. Um poço de virtudes, o dito cujo!!!