Ecos da serra

 

A ilha é assim: Um alfobre de histórias engastadas no tempo que, à falta de quem as desoculte acabam por perder-se definitivamente. Agustina Bessa Luís, que durante quinze dias desocultou a história de Sissi, encontrou aqui «resquícios de romance», lamentando não haver na ilha quem, através da escrita os revelasse. Sem pretensões, apenas por lhe ter dado razão, acusei o toque. Se tal fosse possível, o que da ilha se dissesse, haveria de trazer à luz a alma oculta deste povo, herói de epopeias ignoradas, nem só de vinho, ou de saudade se falaria, mas dir-se-ia que o insular é este ser «cavador de pego e sismo /remador de altas marés» , que possui « em vez de pés uma pena / em vez de mãos uma asa», «ser entre pássaro e homem com remos no coração». Desbravador de barrancos numa paisagem ciclópica, minimizado na dimensão desconhecida dos seus íntimos dramas, relegado para uma margem oceânica que o distancia dos grandes feitos, ou de exaltantes façanhas, das que empolgam o mundo e acorrentam os deslumbrados, o insular agiganta-se na labuta diária pela sobrevivência. Não é, por isso, nem tacanho, nem ignorante, é sim um persistente e corajoso vencedor de obstáculos.

Homens e mulheres cada qual em seus atributos, são gente da ilha com histórias de vida por saber, gente que fez a paisagem e continua a mantê-la, que validou o sacrifício e o esforço da luta, conquistando um estatuto significativo entre os que aqui vivem e não renegam a origem.

Nas terras altas do Seixal, uma zona plana sob uma vertente da Serra do Fanal ganhou o nome de Chão da Ribeira por ter sido um dia assolada por uma cheia da ribeira que por ali corre, fenómeno que, com alguma frequência, tem devastado alguns locais da ilha. É uma funda depressão desabitada, sujeita a nevoeiros, mas por vezes, quando o sol a invade, torna-se numa deslumbrante paleta de verdes, salpicada de pequenas casas que outrora foram palheiros de gado. É um lugar encantador. No entanto algumas histórias antigas registam o terror do drama que arrastava culturas e animais e atingia algum incauto que por ali se aventurava em dias de invernia.

Numa época já distante, contou-me Lia, criança ainda, na companhia de uma irmã ligeiramente mais velha, subiram as duas a serra até ao Chão da Ribeira onde o pai guardava duas vacas num palheiro, com a tarefa encomendada de darem comida aos animais. Que fossem rapidamente, e não deixassem chegar a noite. Mas, crianças como eram, alegres e livres, prolongaram a brincadeira, indiferentes ao perigo dos aguaceiros repentinos e à passagem do tempo. Aconteceu que, ao iniciarem o regresso, uma inesperada borrasca desabou sobre a serra e o recurso a um palheiro abandonado livrou-as da chuvada, mas não as livrou da noite, que entretanto se fez assustadora e fria. Quando por fim deixou de cair a chuva, fizeram-se as duas à descida de serra, três quilómetros e meio de caminho, húmido, deserto, entregues à escuridão e ao medo, mas com a coragem necessária para depressa chegarem à vila. A luz das estrelas num céu límpido depois das nuvens desfeitas, foi pouco a pouco abrindo o ligeiro rasto de claridade que as ajudou a romper o trilho.

Lia contou que, de súbito, um homem surgiu algures em meio do escuro e as acompanhou tranquilamente, serra abaixo, até se encontrarem com o pai que subia, ofegante e ansioso, ao encontro delas. Toda a vila, ao saber do sucedido, contava a história do Anjo da Guarda que, numa noite de temporal, tinha aparecido a duas irmãs no Chão da Ribeira. Eram elas Lia e Norma. Duas crianças afortunadas, abençoadas pelo céu, que lhes enviou, numa hora crucial, o Santo Anjo da Guarda.

Hoje, Lia, mulher urbana, viajada, enfermeira de formação, tem muitos interesses, mas mantém bem cuidadas as suas terras do Seixal e recorda carinhosamente o tempo difícil, todavia feliz, da sua infância. Na casa da cidade nunca dispensou o envolvimento rústico que lhe reforça o carácter voluntarioso e determinado, e lhe permite continuar a viver entre árvores, couves, coelhos e galinhas – diz ela – a sua felicidade.

Na ilha é assim: Não se pense que o insular se deixe acorrentar pela terra; apenas tem seu modo próprio de amá-la, compreendê-la, superar as diferenças e sobrepor-se às adversidades.