Inquietemo-nos!

                               

“Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer

Qualquer coisa que eu devia resolver

Porquê, não sei

Mas sei

Que essa coisa é que é linda”

O verso acima reproduzido faz parte da letra de uma das canções mais marcantes da obra discográfica de José Mário Branco, o cantor, arranjador e produtor, desaparecido fisicamente no dia 19 de Novembro passado.

Um verso que sintetiza na perfeição o que foi a vida, a obra de um homem que foi solidário e sonhador até ao fim. Permanentemente inquieto com tudo, sempre à procura de um mundo melhor.

Um apelo à inquietação, ao desassossego que faz cada vez mais sentido, que é cada vez mais urgente face à realidade presente, da região, do país, do mundo.

Com efeito, as últimas semanas foram férteis na divulgação de estudos, relatórios, inquéritos, indicadores que não podem deixar de suscitar apreensão, preocupação, mas que, sobretudo, nos interpelam a que nos inquietemos, a que ajamos, a que nos empenhemos para que a realidade revelada, retratada, em áreas essenciais da nossa vida colectiva possa evoluir positivamente. Porque é esse o nosso dever de cidadãos conscientes e responsáveis.

Não é, por exemplo, admissível que fiquemos indiferentes quando o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento relativamente a 2018 indica que 17,2% da população em Portugal, após transferências sociais, estava em risco de pobreza, ou que, contabilizando-se apenas os rendimentos do trabalho, de capital e transferências privadas, essa percentagem subiria para 43,4%. Pior ainda é saber-se que entre a população empregada o risco de pobreza registou um aumento de 1,1% em comparação com o ano anterior, ou que, por outras palavras, um em cada dez trabalhadores esteja abaixo do limiar da pobreza, traçado agora nos 501 euros por mês – dados associados à circunstância de termos salários muito baixos e a uma precariedade laboral que também aumentou em alguns sectores de actividade. E na população desempregada a taxa de pobreza relativa subiu de 45,7% para 47,5%, o que equivale a que praticamente em cada dois desempregados, um seja pobre. Igualmente grave é constatar-se que uma em cada três famílias monoparentais é pobre, ou seja, a taxa de risco de pobreza até teve uma ligeira descida em 2018 (de 17,3% para 17,2%), mas nestas famílias aumentou 5,6 pontos para 33,9%. E o mesmo se tem de dizer relativamente à taxa de risco de pobreza verificada na Madeira que se situa nos 27,8% (+ 0,3 p.p. que em 2017), um valor que devia fazer corar de vergonha um governo que passa a vida a vangloriar-se de que a economia regional cresce há não sei quantos meses!

Vergonha é a palavra que Carlos Farinha Rodrigues, um dos grandes estudiosos da pobreza e da desigualdade em Portugal, utiliza para comentar o nível de trabalhadores pobres que temos, um facto que evidencia que os baixos salários não aumentaram tanto quanto a linha de pobreza. Mia Couto, o escritor moçambicano de referência, vai ainda mais longe quando aborda a questão da pobreza em geral, assumindo que “quem deve sentir vergonha não é o pobre, mas quem cria pobreza”- um soco no estômago que devia interpelar-nos a todos e de modo particular a quem tem responsabilidades políticas, económicas e sociais no planeta, no país, na região.

A fatia do PIB que cabe aos trabalhadores é uma questão essencial para se poder alterar este estado de coisas. E, entre nós, ela caiu 5 pontos percentuais desde 2010 e praticamente o dobro desde o início do século. E o prémio salarial dos licenciados em início de carreira tem vindo a encolher, o que pode desincentivar quem está a pensar estudar e que pode ser grave num país onde há ainda um relevante défice de qualificações – há 10 anos, uma licenciatura valia mais 51% de salário líquido face a quem apenas tinha ficado pelo ensino secundário. Agora são apenas 22%.

Na educação, e para além do último estudo PISA ter revelado que ao fim de dez anos de escolaridade cerca de um quinto dos alunos portugueses continua a não ter competências mínimas para resolver situações do dia-a-dia, os dados constantes do relatório anual do respectivo Conselho Nacional são (deveriam ser) também motivo de preocupação, de inquietação. Desde logo porque Portugal tem o dobro de adultos, entre os 30 e os 34 anos, com mais baixas qualificações; um em cada três jovens adultos (33,5%) ainda tem níveis de qualificação muito baixas, mais do dobro da média da União Europeia; a média das idades dos alunos que concluem o ensino secundário em Portugal é mais elevada do que a média registada na UE e na OCDE ; é elevado o número de alunos com desfasamento de dois ou mais anos face à idade normal de frequência de cada ano de escolaridade, em todos os ciclos do ensino; dispomos dos professores menos jovens da Europa e com dificuldades na progressão na carreira, sendo que a maioria encontra-se nos primeiros quatro escalões de uma carreira completa por dez níveis e o envelhecimento da classe docente poderá agravar-se ainda mais, na medida em que é visível a diminuição no número de jovens que optam pelos cursos superiores de Educação.

Pior ainda é saber-se que o sistema não tem sido capaz de eliminar uma parte significativa do denominado “determinismo social”, uma vez que há muito mais alunos beneficiários da acção social escolar (por terem rendimentos familiares baixos) nos cursos profissionalizantes e alternativos do que no ensino regular, ou seja, há uma relação entre os problemas financeiros e as dificuldades de aprendizagem, o que se traduz num maior insucesso escolar por parte dos alunos com menos recursos, o que significa que a escola não está a contribuir para a necessária ascensão social dos mais desfavorecidos. E a este propósito não deixa de ser sintomático que, na última década, nas duas Regiões Autónomas, a percentagem de alunos abrangidos pela Acção Social Escolar (ASE), nos escalões existentes nas regiões, foi sempre superior à percentagem de alunos com ASE no Continente.

No caso concreto da RAM, e segundo o aludido relatório, “a percentagem de alunos com ASE aumentou 7,2 pontos percentuais em 2015/2016, relativamente ao ano anterior, descendo ligeiramente no ano seguinte e voltando a aumentar em 2017/2018 (+ 1,6 pontos percentuais). Dados por demais elucidativos de uma triste e amarga realidade que, durante largo tempo, o poder regional não só negou como vilipendiou quem a denunciou e que constituem simultaneamente a prova inequívoca de que o propalado crescimento económico continua a não beneficiar grande parte daqueles que mais precisam.

Na saúde, igualmente há escassas semanas, a OCDE tornou públicos um conjunto de 23 indicadores em que Portugal está pior do que a média do conjunto de países que compõem a referida organização internacional.

Ao proceder à sua divulgação na edição online do semanário “Expresso”, a jornalista Vera Lúcia Arreigoso, que acompanha esta área naquele jornal, escreveu que “a saúde em Portugal não está, ainda, em cuidados paliativos mas precisa de rápidas e intensivas melhoras”. E isto porque, em síntese, a saúde previne pouco e trata muito, e nem sempre bem. E ainda porque somos dos que mais temos de suportar directamente os custos com os cuidados médicos.

Para a OCDE o diagnóstico nacional é, por exemplo, negativo: na sobrevivência ao cancro (do cólon, do reto, do pulmão), na prevalência de doenças crónicas, na percentagem de obesidade (nos adultos e nas crianças), no número de amputações em contexto de diabetes ou nos casos de baixo peso à nascença, mas também nas mortes por acidentes vasculares cerebrais e de enfarte agudo do miocárdio.

Ficamos de igual modo mal na fotografia devido ao maior consumo de álcool, ao pouco consumo de vegetais, à prática semanal de pouco exercício físico, à baixa probabilidade de acesso ao médico ou a ida ao dentista em caso de necessidade, à menor acessibilidade ao rastreio do cancro do colo do útero. E ainda por cima somos, há anos, líderes nas infecções hospitalares e no consumo de antidepressivos (o triplo do que acontecia em 2000).

Uma realidade que, contrariamente ao que procura veicular o poder regional, é na generalidade idêntica à verificada aqui e agora, com a agravante de que num espaço com bem menor dimensão territorial e populacional exigir-se-ia dos poderes públicos uma resposta bem mais adequada e eficaz do que aquela que tem sido facultada.

Neste quadro registe-se que o primeiro-ministro fez saber que vem aí “uma agradável surpresa na saúde”. Porém, do que o país precisa é de respostas concretas para as suas necessidades nesta área e não de anúncios por mais solenes que estes possam ser – por cá, até ver, continua em curso a dança das cadeiras e da “engorda” das administrações (o SESARAM é um dos contemplados), ao mesmo tempo que se conhece que foi negado um pedido de reforço orçamental de dois milhões de euros para aquele organismo e que há dezenas de concursos pendentes que podem colocar em causa o normal funcionamento da referida empresa pública.

E, sob o ponto de vista ambiental, há de igual modo motivos para apreensão e inquietação. É que na mesma semana em que decorre em Madrid a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a Agência Europeia de Ambiente divulgou um relatório sobre o Estado do Ambiente na UE em que considera que a Europa não vai conseguir cumprir as metas de sustentabilidade que tinha fixado para 2020, uma vez que só dois dos treze objectivos definidos para a protecção da natureza e conservação da biodiversidade deverão ser atingidos, com a designação de zonas marinhas e áreas terrestres protegidas. O relatório refere mesmo que “sem medidas urgentes para fazer face ao ritmo alarmante da perda de biodiversidade, ao aumento dos impactes das alterações climáticas e ao consumo excessivo de recursos naturais, a Europa não atingirá os seus objectivos para 2030, nem para 2050”.

A um nível mais global, atente-se ao tema em destaque na edição portuguesa do corrente mês da revista “Courrier internacional”, “As ilhas sob ameaça”, em risco de desaparecerem, nas próximas décadas, devido à subida das águas e em consequência do aquecimento global. Na sua maioria são pequenas e anónimas ilhotas ou atóis. Mas, há grandes ilhas e cidades costeiras em risco de serem “engolidas pelos oceanos” – onde, segundo estudos recentes, vivem actualmente cerca de 200 milhões de pessoas, cujas terras deverão ficar submersas até ao final do século. No mesmo sentido, a Oxfam, uma organização internacional, acaba de revelar que “hoje, é sete vezes mais provável ser-se internamente deslocado por ciclones, inundações e fogos florestais do que por terramotos e erupções vulcânicas, e três vezes mais provável do que por conflitos”.

E já agora, se julga que esta emergência ambiental não nos afecta, recordo que acaba de ser revelado que Portugal encontra-se entre os vinte países que mais sofreram com as alterações climáticas e que na Região está comprovado que chove cada vez menos e as temperaturas são cada vez mais altas, tendo sido já ultrapassadas as previsões para o ano 2070 neste domínio.

Razões de sobra para nos empenharmos todos na defesa do planeta ameaçado. Para respondermos ao desafio da jovem activista sueca Greta Trunberg: “de fazer o que pudermos para estarmos do lado certo da história”. Porque, não tenhamos dúvidas, o planeta precisa de socorro. Conscientes de que, citando de novo José Mário Branco, “o que a gente faz é uma gota no oceano do grande caminho da Humanidade”.

 

         * Por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

Post-Scriptum:

1) ADN: Há marcas que perduram no tempo. A longevidade do poder regional laranja institucionalizou nos seus diferentes protagonistas o sentimento de absoluta e total impunidade. De que no exercício de funções, qualquer que seja a sua natureza, não têm de se sujeitar a nada. De que tudo lhes é permitido. De que não há regras, nem princípios a que se tenham de sujeitar. Um autêntico vale tudo instalado. Em que a única lei que prevalece é a do quero, posso e mando. Uma marca que os acompanha, mesmo depois do abandono dessas funções.

E assim, não espanta que um ex-secretário regional conceda licenças de pesca – que deveriam ser atribuídas a armadores – a uma cooperativa que não dispunha de barcos, nem procedeu ao seu fretamento, vendendo-as a armadores asiáticos. Com o jeito, a cooperativa supostamente abateria a dívida que tinha para com o governo. Na defesa, o ex-governante proclama que actuou em defesa do “interesse público”. E, ao que consta, alega ainda que tal prática “era normal”. Simplesmente espantoso!

Entretanto, 15 anos depois dos factos, parece que finalmente o ex-secretário regional irá ser julgado pelos crimes de prevaricação e abuso de poder. Mas, mesmo sabendo-se que um outro arguido do inquérito inicial, o director regional de Pescas, já foi condenado, com trânsito em julgado em Julho de 2014, o que se sabe dos percalços da investigação em causa não permite concluir que o desfecho venha a ser o mesmo. Pode ser que, com a ajudinha da justiça que por cá (não) temos, se venha a safar de qualquer pena. Tudo é possível!

Idêntica leitura, de que não há nada de ilegal no procedimento adoptado, decorre da notícia, publicada neste jornal online, segundo a qual um ex-secretário regional da Educação, presidente do conselho geral da Universidade da Madeira, não via qualquer incompatibilidade, qualquer conflito de interesses, por, simultaneamente, coordenar uma pós-graduação no ISAL, uma instituição privada de ensino superior na Madeira. Concorrência? Cá nada, só inveja por não serem requisitados para trabalhar em vários tabuleiros ao mesmo tempo.

Transformar a zona franca numa espécie de “vaca sagrada” da autonomia pressuporia que os dossiers que a envolvem fossem irrepreensivelmente geridos. Que a legalidade nunca fosse posta em causa. O que, convenhamos é pedir demasiado aos protagonistas que temos. Vai daí o governo regional entendeu que a concessão se devia fazer por ajuste directo e não por concurso. Agora, tem a legalidade à perna. Quem passa o tempo a dar tiros nos pés, não se pode queixar depois.

E para completar o ADN aí está a condenação pelos crimes de burla e falsificação de documentos de um ex-líder da JSD e deputado regional. Um primor!

2) “Viloada” – O outrora auto-intitulado “único importante” cá do burgo insurgiu-se contra o, no seu douto entendimento, pouco destaque concedido pela comunicação social local a um prémio atribuído internacionalmente a um ex-secretário regional de vários dos seus executivos, atirando-se ao, que designou, por “novos vilões”. E pelo meio, como é seu hábito, vitimizou-se, alegando ser “censurado” quando perora sobre a “pedagogia dos valores”. É preciso ter lata! Logo ele que frequentemente utilizou o espaço público para ameaçar e insultar tudo e todos. Não resistindo igualmente a recorrer à cantilena – cassete de que “a Madeira pode ser uma Singapura do Atlântico”. Verdade se diga que no âmbito dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a equiparação foi por demais tentada, quanto ao resto o legado deixado teve como expoente máximo o famigerado PAEF, cujas dramáticas consequências ainda perduram. E já agora, não se esqueça que comportar-se como “vilão” pode ser expresso quando se pretende transformar a região no centro do mundo e atribuir, sem qualquer nexo, ao respectivo povo o estatuto de “superior”.

3) Caso de polícia – É no que se tornou tudo o que envolve o denominado Clube de Futebol União e respectiva SAD. Toda a história acaba por ser profundamente elucidativa de como, também o desporto, foi sendo gerido por estas bandas. Que mais falta para fechar?!

4) Ao que chegamos – Desde 25 de Novembro que a TV portuguesa em sinal aberto tem em antena 16 telenovelas, sendo que 11 são repetições, ou seja, quase 70% da ficção emitida de 2ª a 6ª feira. É obra!