Ser professor: a emoção de uma aula

Provavelmente isto que aqui vou contar não se passa de igual modo nem com todos os profissionais, nem em muitas profissões. Mas na minha profissão, a de professor, tenho momentos de verdadeira satisfação interior, uma espécie de regozijo do eu. Esta satisfação advém da consciência de que o trabalho foi bem feito e do prazer como consequência. Nada substitui aquele momento no final da aula em que estamos plenamente realizados. É de uma satisfação quase indescritível ou pelo menos não tenho o engenho para a saber descrever. É um estado emocional bastante intenso. Ontem relatava a um colega que essa satisfação é cada vez mais rara. Alguns fatores pesam, como a idade e algum desgaste (já ensino pelo 26º ano consecutivo). Mas continuo a pensar que não é a idade o fator principal de um desgaste que confessadamente começa a aparecer. O que desgasta é a debilidade do sistema educativo e o que fizerem dele nas últimas décadas. Há um cansaço que eu pensei nunca alcançar nesta profissão. Quem me conhece como professor – os meus alunos em primeiro lugar, os meus colegas em segundo e os pais em terceiro – sabem avaliar a qualidade ou falta dela do meu trabalho. São estas pessoas que, umas mais diretamente que outras e umas mais conscientes que outras, sabem avaliar o meu trabalho dentro de uma sala de aula e por isso ao longo dos anos tenho-lhes reconhecido todos os contributos que me podem dar para melhorar. Uma das maneiras que tenho de melhorar a qualidade das minhas aulas é estudar. E que felicidade foi escolher uma profissão que me permite estudar ao longo da vida, e ver esse estudo refletido no dia a dia das aulas e da formação dos mais jovens. Mas sinto que a qualidade de uma aula é, cada vez mais, algo que não se considera no trabalho de um professor (ainda que seja politicamente incorreto admiti-lo). O que passa a contar é apenas a montra, mesmo que a casa esteja toda desarrumada atrás da montra. Este é um desgaste que começa, pelo menos explicitamente, com uma ministra, Maria de Lurdes Rodrigues. E é um desgaste que tem continuado com os governos que daí se seguiram sem praticamente algum travão (ainda que a nível regional se tenham feito alguns esforços no sentido contrário que não poderemos esquecer, nomeadamente na contagem do tempo de serviço perdido dos professores. Mas isto, como veremos mais adiante, não é tudo o que se pode fazer). Os sinais do desgaste são cada vez mais visíveis: quando entrei na carreira era invejado por conhecidos e amigos. Era uma boa profissão. Hoje em dia praticamente ninguém deseja ser professor (segundo os mais recentes dados) ou, ainda que o deseje, não quer essa profissão. Mas ao mesmo tempo, quando foi para os denegrir (se calhar até com algumas razões), todos os ministros e políticos souberam a quem apontar o dedo: os professores são os responsáveis pois são o nervo central do ensino. Ora, mas este argumento funciona no sentido exatamente oposto: se queremos mais e melhor ensino temos também de atacar pelo nervo central, valorizando as pessoas e o seu trabalho. E nem sempre dar-lhes mais vencimento é o único caminho a seguir. Esse é apenas o caminho mais fácil. São necessários mais meios. E posso até elencar uma lista relativamente fácil para qualquer governo de concretizar:

  • Mais auxiliares de ação educativa que apoiem tudo o que uma aula implica.
  • Mais administrativos que possam encaminhar todas as tarefas burocráticas (faltas de alunos, encaminhar casos para instituições como tribunal de menores, assistência social, serviços de psicologia, matrículas, etc., libertando os professores destas tarefas que são cada vez mais exigentes, requerem muito tempo e disponibilidade)
  • Concentrar o trabalho dos professores nas aulas.
  • Retirar das avaliações de professores bónus por desempenho em tarefas burocráticas que nada tem que ver com dar aulas
  • Exigir aos professores mais tempo na escola, mas que não tenham de ir para casa sentar-se nos escritórios pagos dos seus bolsos ao serviço das escolas.
  • Ter salas e gabinetes de trabalho horários dignos que permitam reuniões a horas decentes.
  • Preparação atempada de ano letivo com reuniões de trabalho já em Julho, período de menos trabalho para a maioria dos docentes (apenas andam a fazer formações despropositadas muitas vezes para cumprir a formalidade das avaliações). Os professores devem conhecer o seu horário de trabalho mais atempadamente. Há ainda muitos professores que sabem a uma quinta-feira à tarde o que vão ter de ensinar logo na segunda de manhã, muitas vezes com níveis novos e níveis sobrepostos que nunca lecionaram.
  • Distribuição de turmas e horários de forma equitativa e não de acordo muitas vezes com os interesses de grupos de maior influência dentro das escolas.
  • Não “atirar” para alguns docentes que chegam por último aquilo que os outros mais velhos não querem.
  • Acabar de vez com méritos apenas baseados na idade que só criam separações e invejas entre colegas. Os colegas mais experientes têm o ouro da profissão, que é a experiência. Mas não se pode esperar que os mesmos partilhem essa experiência quando disputam lugares de privilégio dentro das escolas, ou menções qualitativas com quotas para progredirem nas suas carreiras.
  • Criar espaços de trabalho abertos (open space) com uma máquina de café, espaços agradáveis arejados e modernos.
  • Turmas com um número adequado de alunos (não pode acontecer que um professor tenha 120 testes de 2 em 2 meses para corrigir, não lhe sobre tempo para projetos extra-aulas e depois ver um colega ao seu lado, com menos turmas e com mais tempo acabando a sua avaliação ser beneficiada em função desse tempo. Um professor não pode ser prejudicado por ocupar todo o seu tempo de trabalho a dar aulas e com a avaliação dos seus alunos).
  • Maior equipamento tecnológico distribuído de maneira equitativa pelas salas de aula. Está mais que demonstrado que ferramentas como projetores e ligação wi-fi podem melhorar as aprendizagens colaborativas. Há escolas com equipamentos obsoletos ou inexistentes e muitas das vezes os professores andam com tróleis, como se fossem viajantes, com o seu computador, projetor, extensões elétricas, etc, ao serviço das escolas.
  • Sobretudo, o mais importante que tudo, não fazer da escola um trampolim de exibicionismo político para alcançar poder e exercê-lo sobre os outros.

Mesmo sabendo que as escolas são realidades diferentes e que umas são melhores nuns aspetos e piores noutros, tenho a ideia – mesmo que sem qualquer estudo que a suporte – que muitos colegas, incluindo os que ocupam cargos diretivos e também lutam com estas dificuldades, subscrevem o que aqui refiro, pelo menos em número suficiente que justifique esta publicação. Estou igualmente convicto que com tudo isto que acima refiro regressará aquele gosto do trabalho bem feito, com mais disciplina, maior organização, cooperação e cidadania escolar. E nada disto tem que ver com a idade nem se trata na psiquiatria.