Regresso ao (sempre presente) passado

Quando no Verão de 1968 o ditador Oliveira Salazar caiu da cadeira de lona, no Forte de Santo António da Barra, ficando incapacitado e o regime viu-se forçado a proceder à sua substituição, uma parte do país acreditou que o seu sucessor (Marcelo Caetano) concretizaria a “abertura” anunciada.

Marcelo, tal como Miguel Albuquerque, deixara, tempos antes, de fazer parte da lista de apoiantes incondicionais do ditador, pelo que a sua ascensão à presidência do Conselho de Ministros gerou alguma expectativa de mudança que, diga-se de passagem, rapidamente se esfumou. É que da propalada “abertura” restou pouco mais do que cosmética, como a substituição de Censura por Exame Prévio e PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) por DGS (Direcção-Geral de Segurança). No mais, no fundamental pouco ou nada se alterou. As liberdades democráticas continuaram cerceadas, a repressão policial manteve-se e prosseguiu a guerra colonial. Em pouco tempo a oposição, melhor dizendo as oposições, perceberam tudo isso. E até os aliados iniciais da designada “Ala Liberal” concluíram que tudo não passara de um logro.

Foi um pouco isso que ocorreu na Região, nos últimos quatro anos! Albuquerque venceu as eleições directas internas e mais tarde as regionais de Março de 2015 porque havia sido o único que no respectivo partido havia questionado o poder do auto-intitulado “único importante” e assumido a bandeira da “renovação”. Uma ousadia que até lhe valeu ameaça de expulsão.

Assegurando que mantinha boas relações pessoais com o, entretanto, nomeado primeiro-ministro, António Costa, Albuquerque transmitiu a ideia de que a anterior guerra permanente com Lisboa iria dar lugar a uma política de concertação e de diálogo, ao mesmo tempo que instituiu alguma normalidade no relacionamento com o principal órgão de governo próprio da Região, o parlamento, que o seu antecessor sempre desrespeitou, chegando a denominá-lo de “casa de loucos”.

Esta nova postura no que concerne ao relacionamento com o parlamento regional não significou, porém, que as propostas da oposição tivessem passado a ter outro tratamento: continuaram a ser pura e simplesmente chumbadas; a maioria parlamentar permitiu que nada de novo tivesse ocorrido. O resultado das várias comissões de inquérito é a prova insofismável disso mesmo. E, tal como no tempo da criatura, o PSD não teve qualquer pejo em votar contra iniciativas da oposição e, mais tarde, apropriar-se das mesmas, como, por exemplo, com o orçamento participativo regional. Ou antecipar-se na apresentação, como fez com a aplicação na região do denominado SAPA – Sistema de Atribuição de Produtos de Apoio que, entretanto, continua por regulamentar. Ou então, votar a favor, como sucedeu com a proposta de dar prioridade ao consumo de produtos regionais nos organismos públicos que, apesar de aprovada, permanece por concretizar.

Na sequência de uma nova derrota autárquica (eleições de 2017), ocorreram várias mudanças na composição do governo regional, bem como alterações na estratégia até então seguida, quer no relacionamento com o Estado, em particular com o Governo da República, quer relativamente à política de obras públicas a adoptar. De repente, voltou a haver dinheiro para tudo e mais alguma coisa. Uma mudança que decorre da chegada ao governo do administrador de um dos maiores grupos privados regionais, a quem, e em especial, foram concedidos vastos poderes, quer na área política, quer na económica e financeira. A partir daí, voltou a política do fartar vilanagem, da aposta desenfreada em novas obras públicas, para regozijo do lobby do betão e das empresas do sector da construção civil, em particular daquela de que Pedro Calado saíu directamente para o executivo de Albuquerque.

Desde então e em simultâneo, voltou a sentir-se a presença, cada vez mais frequente, do outrora omnipresente antigo inquilino da Quinta das Angústias. Que não só aplaudiu a mudança, como não desampara o espaço público, para onde, de resto, tem vindo a ser catapultado pela dita “renovação”. O seu sucessor passou, aliás, a fazer-se acompanhar, frequentemente, do dito cujo em eventos partidários, numa espécie de tutoria e é convidado para jornadas parlamentares, jantares partidários e até teve direito a fazer a ronda das barracas ao lado do líder (?) na festa do Chão da Lagoa. Uma festa onde inclusive o “Madeira Livre” foi ressuscitado, certamente com a bênção do querido e eterno líder, AJJ. Albuquerque, de resto, nem sequer dispensa seguir a sua estratégia na elaboração das listas eleitorais, assumindo-se como candidato quer às legislativas regionais quer nacionais, em que o inimigo externo (leia-se governo de Lisboa), tão do agrado do pai da dívida “oculta” constituirá o mote principal. Está bom de ver que, no entretanto, a apregoada “renovação” foi lançada às urtigas – já agora, mais um pormenor muito importante, coincidentemente com a referida mudança de estratégia, o blog “Renovadinhos”, surgido em Maio de 2015, que foi associado ao aludido “único importante” cá do burgo, pelo estilo e linguagem utilizados, e que durante os dois primeiros anos desta legislatura foi particularmente crítico da sucessão partidária e governativa, reposicionou-se também, passando a ter como único alvo a oposição em geral. Uma mera coincidência está bom de ver!

Com eleições à porta, a dramatização está aí. Ou nós (leia-se PSD/M) ou o caos. E porque as sondagens apontam para a improbabilidade de obtenção de maioria absoluta apregoa-se que nesse cenário a Região tornar-se-ia ingovernável. E porque as mesmas sondagens indiciam que o poder pode mudar de mãos volta a agitar-se o papão do comunismo. De a Madeira poder transformar-se numa “Venezuela”. Fica a dúvida se recorrerão aos “argumentos” do passado: de que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço e os socialistas vão tirar as reformas?! Com um povo dito “superior” nunca se sabe se a estória pega. Em todo o caso, talvez fosse conveniente não se esquecerem de que quem cortou salários e pensões foi o governo da coligação PSD-CDS, do triunvirato Passos Coelho, Paulo Portas e Assunção Cristas… Como também não convirá menosprezar que o tal apocalíptico governo que poderá emergir na sequência das próximas eleições regionais, no plano nacional, não deu cabo do país, da economia e das populações, muito pelo contrário, pelo que aos arautos da desgraça talvez haja a esperança de o CDS poder desempenhar o papel da Carochinha.

De resto, não deixa de ser patético que aqueles que deram cabo das contas públicas regionais, que infernizaram a vida de milhares de madeirenses e porto-santenses apregoem preocupação com a respectiva população, quando na realidade o que os preocupa é a eventualidade de perderem o seu poder, pessoal, partidário, os seus lugares de chefia na administração pública e, sobretudo, deixarem de poder prosseguir a sua velha política do “quero, posso e mando” e de protecção dos inúmeros interesses instalados. Porque, se assim não fosse, teriam posto termo a uma operação portuária que permanece como a mais cara da Europa e não permitiriam que um outro dos “Donos Disto Tudo” haja sobre o território como se fosse uma coutada sua, como se tudo estivesse a saque.

Resumindo e concluindo: é um facto que, do ponto de vista democrático, respira-se um ambiente menos crispado, menos asfixiante, em resultado do “campeão português do Insulto” ter deixado de ter condições para procurar tutelar tudo e todos, mas a prometida mudança e “renovação” albuquerquiana é muito mais a “continuidade” marcelista do que um corte com o passado. Ora, entre o original e a cópia, não há escolha. É uma espécie de vira o disco e toca o mesmo.

 

 *por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

Post-Scriptum:

1) Eminência Parda: se lermos com atenção a entrevista e o escrito posterior do 1º vice-presidente de um governo regional da Madeira, é forçoso concluir que, afinal, a “Madeira Nova” tem outro dono, Miguel de Sousa. Que se assume como uma espécie de génio, uma mente brilhante, que, não apenas, a Madeira, mas o País, a Europa e o Mundo não aproveitaram. Mais a mais, quando ninguém percebe nada de finanças senão ele. Com a agravante de o apelido o ter prejudicado e de ter de haver-se com a Pide! Vá lá, atenuem a injustiça e atribuam-lhe o “cordão autonómico”.

2) Vale tudo: o pessoal do “carro preto” (feliz expressão usada por António Fontes para caracterizar o poder regional) têm a particularidade de gerirem os dinheiros públicos em proveito próprio ou para facilitarem a vida aos amigos ou conhecidos. Em que vale tudo, desde fazer negócios com empresas detidas (no SESARAM) até deixar prescrever dívidas à Segurança Social. Viva a república das bananas!

3) “Jobs for the Boys”: para quem faz questão de dizer que pretende fazer diferente há escolhas que constituem sinais nada abonatórios. É o caso da indicação do líder da JS como nº 2 da lista do PS/M à Assembleia da República ou a continuidade do “apparatchik” de Água de Pena e do líder parlamentar cessante na lista para a ALM. É caso para dizer: favores com favores se pagam!

4) Descaramento: a criatura que foi responsável por uma governação profundamente castradora dos direitos, liberdades e garantias, de permanente “claustrofobia democrática” para parafrasear a expressão tão do agrado do seu correligionário Paulo Rangel, insiste em procurar dar lições do que nunca praticou: o respeito pela liberdade e pelos direitos fundamentais da pessoa humana. E ao mesmo tempo que invoca em vão a liberdade, aplaude a actuação flamista. Que, recorde-se, só por mero acaso não provocou a perda de vidas humanas. Tudo embrulhado numa pretensa defesa de “valores”. Um mimo!

5) Sinais positivos: o novo bispo da diocese fez questão de deixar claro que é contra a realização de comícios no adro das igrejas e que pretende respeitar o legado de D. Eugénia Canavial de utilização da sua herança no apoio aos doentes oncológicos. Já agora, esperemos que, em coerência, se distancie dos padres que usam o púlpito das igrejas para fazer propaganda partidária.