Sérgio Marques: novos eurodeputados madeirenses devem pugnar pela integração da RAM na actual revolução digital

Fotos Rui Marote

Durante dez anos deputado pela Madeira ao Parlamento Europeu, numa altura em que, recorda, o ambiente era de euforia com o engrandecimento da União Europeia, muito ao contrário do que hoje se sente, Sérgio Marques achou a experiência “muito gratificante” e lamenta as circunstâncias de desentendimento com o então presidente da Comissão Política do PSD-M, que o impediram de exercer um terceiro mandato. Admite que houve erros no uso dos fundos estruturais na Região, embora considere que a maioria foi bem aplicada, e diz não ter dúvidas de que, muito graças aos mesmos, hoje vive-se melhor na RAM do que na altura em que era eurodeputado. Em entrevista ao Funchal Notícias, considera que se colocam desafios de monta aos novos eurodeputados pela Madeira, entre eles a intervenção na área da política internacional para contrariar as alterações climáticas e para integrar o arquipélago na nova revolução digital.

Funchal Notícias: Foi eurodeputado entre 1999 e 2009, uma altura diferente, mais crucial, talvez, para a defesa dos interesses da Madeira, na medida em que era necessário assegurar e cativar a proveniência de fundos de coesão para desenvolver a Região nessa altura. Como foi a sua experiência, para um deputado provindo de uma região ultraperiférica dum país periférico da Europa, fazer valer os interesses da RAM junto dos “grandes”?

Sérgio Marques: Foi um desafio considerável. Levar a causa de regiões pequenas, distantes e ultrapérificas como a Madeira aos centros de decisão europeus era uma tarefa difícil, e eu não teria sucesso na mesma se a enfrentasse sozinho. A questão central era procurar aliados, parceiros, colegas e outros agentes que tivessem interesses em comum, para afirmar, de certa forma, um lobby no seio das instituições europeias, nomeadamente no Parlamento Europeu, que tivesse força suficiente para fazer valer os nossos interesses. Este era o grande objectivo, tratar de estabelecer e reforçar um lobby das regiões ultraperiféricas, mas não apenas das mesmas, de todo um outro conjunto de deputados para o qual a ideia e o objectivo da coesão económica e social, a diminuição das assimetrias e das injustiças inter-regionais e inter-territoriais ao nível da União Europeia fizesse sentido.

FN – Acha que nesse tempo as instâncias europeias já estavam mais ou menos sensibilizadas para as reivindicações das pequenas regiões?

SM – Sim, porque eu não comecei este trabalho. Era um trabalho que já vinha de antes, nomeadamente da parte do Dr. Nélio Mendonça, que foi o deputado que me antecedeu, ao nível do PSD, e também de outros deputados portugueses. Os próprios governos das regiões ultraperiféricas também tinham feito o seu trabalho, o conceito de ultraperiferia já estava estabelecido e consagrado nos tratados, e isso ajudou bastante a desenvolver o nosso trabalho no Parlamento Europeu. Ao fim e ao cabo, o que eu quero frisar é que esta ideia de estabelecer e afirmar o interesse da ultraperiferia já vinha desde a nossa adesão ao projecto europeu, e que ainda hoje tem continuidade. Isto será sempre um desafio que nunca estará acabado. A UE, como sabemos é uma negociação permanente. Todas as regiões, e são centenas, aquelas que existem neste momento na UE, tratam de se posicionar da melhor forma para fazer valer os seus interesses, e neste contexto regional de grande diversidade, com regiões ricas, com regiões de rendimento médio, com regiões pobres, com regiões com características geográficas específicas como era o caso da Madeira, nós, os ultraperiféricos, tivemos de nos integrar nestas dinâmicas, nesta lógica, e tratar também de fazer valer os nossos interesses. Temos de estar sempre posicionados da melhor forma para fazer valer os interesses da RAM e das outras regiões ultraperiféricas.

FN – Na altura integrou a Comissão de Desenvolvimento Regional. Sentiu que era fácil estabelecer essas parcerias, que não eram conflitantes os interesses de uma região com os de outra?

SM – Não é por acaso que eu estive dez anos na Comissão de Desenvolvimento Regional, durante os dois mandatos. Essa a comissão que fazia mais sentido, do ponto de vista da defesa dos interesses da Madeira. O trabalho aí era um trabalho difícil, de muita negociação, de persuasão dos meus colegas, de sensibilização para a nossa problemática muito específica. O que era importante era tentar explicar o que era a ultraperiferia, fazer ver aos outros colegas de regiões completamente distintas, em termos da sua caracterização geográfica, quão diferentes nós éramos. E, na base dessa diferença, a necessidade que nós tínhamos de políticas próprias, de medidas adaptadas a essa diferença. Isto era o cerne do nosso trabalho, tratar de lhes explicar, de traduzir o que era isto da ultraperiferia. Nem sempre tínhamos sucesso, mas acho que, ao fim dos dez anos, o trabalho foi bastante positivo. Os deputados das regiões ultraperiféricas (éramos nove) constituíram um grupo informal, que eu cheguei a liderar durante um determinado período, e desenvolveram um trabalho muito positivo em prol das suas regiões. Traduziu-se numa série de situações, quer em termos de fundos estruturais, quer em termos das tais políticas, da modulação, da adaptação das políticas, à nossa diferença.

FN – Nessa altura era mais fácil obter os fundos estruturais de que a Madeira necessitava para se desenvolver… Depois, pouco a pouco, a “torneira” foi-se apertando…

SM – Certo. Isso é um facto. Mas já assim, havia sinais claros de um maior egoísmo, de uma maior contenção relativamente aos fundos que deveriam ser destinados aos países menos favorecidos. O perigo das duplicações dos fundos estruturais já tinha passado, foram as duas duplicações ainda na presidência da Comissão Europeia por parte de Jacques Delors. Eu já entrei numa fase posterior, e senti as dificuldades. Entrei também já numa Europa mais alargada. Tinha ocorrido o grande alargamento aos países de Leste, na sequência da queda do Muro de Berlim, enfim, toda essa grande mudança política em termos europeus…

FN – Na altura devia fazer-se sentir uma ideia de engrandecimento da Europa…

SM – De grande alargamento… Havia mesmo uma euforia, um clima completamente diferente daquele que vivemos hoje. Isso é inquestionável. O ambiente era muito mais positivo, achava-se que o projecto europeu não ia conhecer, nem de perto nem de longe, os obstáculos e as dificuldades que hoje entretanto se passaram a sentir. Mas ainda assim era bastante complicado o trabalho de fazer valer os interesses das nossas regiões, até porque o Parlamento, e a União Europeia, tinha vindo de um grande alargamento, e havia bem mais regiões, em termos numéricos, a disputar o bolo dos fundos. E esse “bolo” manteve-se mais ou menos constante, não foi ampliado para atender às necessidades de regiões bastante mais desfavorecidas que vinham do Leste, com Produtos Internos Brutos inferiores mesmo aos nossos, das regiões mais desfavorecidas portuguesas, incluindo a Madeira. Houve aqui uma grande competição dos fundos, por parte das novas regiões que entretanto aderiram.

FN – Na altura já era perceptível a predominância de países muito influentes no seio da UE, como a Alemanha, o Reino Unido ou a França?

SM – Sim, nós temos de ter em conta que o projecto europeu decorre da necessidade de uma “étente”, de um entendimento entre a França e a Alemanha. A razão de ser do projecto europeu era pôr estes dois grandes países, que anteriormente sempre se guerrearam, sempre estiveram na origem dos grandes conflitos europeus, e mundiais…

FN – Mas depois tornou-se muito perceptível uma liderança, digamos, principalmente da parte da Alemanha…

SM – Sim, o eixo franco-alemão sempre teve aqui um grande poder. Eram os dois maiores países da UE, os países que ficaram na base, que estiveram na génese, do projecto europeu e, sem eixo franco-alemã, a União Europeia também não avançava. Havia aqui a necessidade de haver um entendimento entre todos os grandes países, mas também os países como o nosso, e aqueles que vieram a aderir sucessivamente ao longo do tempo.

FN – Algo interessante que me foi dito pela eurodeputada Liliana Rodrigues foi que os alemães têm uma política, relativamente aos deputados europeus, de mantê-los lá bastante tempo, especializá-los em determinadas áreas, e fazê-los permanecer durante sucessivos mandatos, para conhecerem a fundo a matéria e estabelecerem as ligações mais aprofundadas que for possível, que beneficie o necessário trabalho diplomático, de bastidores, de construção de ligações… Como o Sérgio Marques acabou por ficar dois mandatos, sentiu que a sua permanência no Parlamento durante mais tempo já lhe permitia maior capacidade de manobra, de negociação?

SM – Isso é a pura verdade. Nós, até adaptarmo-nos àquele mundo novo, muito complexo, leva muito tempo. E só nos sentimos verdadeiramente como peixes no oceano ao fim de largos meses, embora eu prefira não quantificar. Quanto mais tempo passamos exercendo o nosso mandato, mais habilitados vamos estar para o desenvolver, com bons resultados para aqueles que representamos. Isso é inquestionável, e foi com muita pena minha que, por razões que são sobejamente conhecidas, acabei por não ter hipótese de um terceiro mandato. Mas pronto, isso já são outras coisas.

FN – Para si foi uma experiência gratificante.

SM – Sim, extremamente gratificante.

FN – Teria continuado…

SM – Sim, tudo se perspectivava para um terceiro mandato. Mas depois ele não se concretizou.

FN – Houve um desaguisado entre si e o presidente do Governo Regional, Alberto João Jardim, no caso, presidente da Comissão Política do PSD-Madeira.

SM – Sim, acabou por impedir que eu fosse candidato. É óbvio que se tivesse desenvolvido um terceiro mandato, estaria na posse de todas as condições para fazer um excelente mandato, com proveitos muito positivos para a Região.

FN – E olhando para trás e fazendo um pouco de autocrítica, sem trair os seus ideais partidários, entende que os fundos de coesão que foi possível aos deputados madeirenses na Europa obter, foram bem aplicados?

SM – Em primeiro lugar, importa dizer que os fundos estruturais que foram obtidos pela Região não foram o resultado do trabalho dos eurodeputados. Foi o resultado de um trabalho conjunto, em que os eurodeputados têm um contributo. Acima de tudo, a negociação é uma negociação entre Estados, com a UE, no seio do Conselho… O Parlamento Europeu é óbvio que tem um papel determinante, fundamental, mas não se pense que os fundos vêm para a Madeira apenas porque temos lá eurodeputados… Os fundos são o resultado de uma estratégia global, por parte de cada Estado, e são o resultado do trabalho de muita gente… E de uma estratégia regional que envolve o Governo Regional…

FN – Mas de certeza que não viriam fundos para cá se não tivéssemos eurodeputados.

SM – Sim, ou viriam em menor escala, sem dúvida. É importantíssimo ter uma representação forte no Parlamento Europeu, quanto mais forte melhor, quanto mais eurodeputados melhor. Houve uma fase em que chegámos a ter três eurodeputados em simultâneo. Durante o meu primeiro mandato eu estive sozinho, a representar a Madeira, no outro mandato tive a companhia de um eurodeputado socialista, dr. Emanuel Jardim Fernandes. Estabelecemos uma parceria muito próxima e inevitável.

FN – Mas voltando à questão, de se os fundos estruturais foram efectivamente bem aplicados….

SM – Acho que de uma maneira geral sim. Explicam a grande transformação que ocorreu na nossa região, e no nosso país. Mas houve erros.

FN – Erros graves.

SM – Alguns até que se podem considerar graves. Sim, não tenho problema em qualificá-los assim, mas isto não é exclusivo da nossa Região. Esses erros cometeram-se ao nível do país, cometeram-se na nossa região, e cometeram-se noutras regiões. Mas o que importa frisar é que de uma forma geral, e maioritariamente, esses fundos foram muito bem despendidos, e são esses fundos que em grande medida também explicam a grande transformação que ocorreu na nossa região. Eu costumo dizer que a Madeira teve dois factores que para mim estão por detrás do grande sucesso de transformação e desenvolvimento da Região. Um deles, a nossa integração na União Europeia, o segundo a nossa autonomia. Autonomia política e integração europeia, e a própria dinâmica que se estabeleceu entre estes dois factores fizeram com que a nossa integração tivesse tido oportunidade de despertar dinâmicas muito positivas em termos de desenvolvimento. Acho que sem autonomia, ou sem integração europeia, a Madeira seria hoje bastante diferente daquilo que é.

FN – Houve uma aplicação intensiva dos fundos europeus numa rede viária que era efectivamente necessária para desenvolver a ilha, e para descentralizar, para retirar de um certo obscurantismo marcado pela distância certas localidades que hoje são muito mais próximas. Isso é mais ou menos consensual, de que foi um bom investimento. No entanto, a partir de uma dada altura exagerou-se, quando se começou a apostar em vias rápidas desnecessárias e que acabaram por não ser concluídas, em túneis que também não o foram e nos quais se gastaram rios de dinheiro, praticamente sem olhar a nada…

SM – Mas nessa fase já não havia aplicação de fundos estruturais. Os túneis, as vias rápidas que ficaram por concluir, não foram projectos já financiados pela UE.

FN – Na altura, um argumento de peso para investir tanto nos túneis e nas vias rápidas era o de que era preciso aproveitar esses fundos enquanto ainda estavam disponíveis.

SM – Certo, e isso durante a maior parte do tempo assim foi. Todas as infraestruturas rodoviárias foram financiadas pela União Europeia. Mas na última fase, já não tivemos financiamento da UE.

FN – Fica o esclarecimento. Mas houve investimento em infraestruturas rodoviárias que ao fim e ao cabo não eram necessárias. Há localidades onde se fizeram ligações daqui para ali, ganhando com isso cinco ou dez minutos de tempo nas distâncias…

SM – A questão é que se podem ganhar apenas cinco minutos em termos da nossa mobilidade, mas para as pessoas que são servidas por essas infraestruturas, isso é extremamente importante. E é por isso que eu costumo dizer que as infraestruturas rodoviárias não eram apenas infraestruturas económicas, para melhorar as condições da nossa economia. Eram também, em parte significativa, infraestruturas sociais.

FN – Em certos locais como a Ribeira Brava, isso funcionou ao contrário. Era uma localidade de passagem para todos e passou a ser um local mais ou menos esquecido porque os automóveis transitam a montante do centro… E já poucos lá param…

SM – No entanto, todo o concelho da Ribeira Brava beneficiou de uma série de infraestruturas rodoviárias de natureza municipal e regional que estabeleceu uma muito maior coesão do concelho. Praticamente todos os sítios da Ribeira Brava passaram a ser atendidos por estrada. As pessoas deixaram de viver sem acesso às suas casas através de estrada, o que me parece uma coisa básica, e isso permitiu outra coesão do concelho. As infraestruturas rodoviárias são infraestruturas económicas, mas também, e no caso da Madeira, infraestruturas de natureza social. Apesar da nossa pequenez, a Madeira era uma ilha composta por dezenas de pequenas “ilhas”, aglomerados urbanos perfeitamente isolados, sem acesso a água, a saneamento básico, e a estrada. Acho que era fundamental levar a estrada à casa de todas as pessoas.

FN – Há quem critique muito ter-se desinvestido da parte estritamente social. Por exemplo, recentemente entrevistei um candidato que reconhece os benefícios da aposta na rede viária, mas que critica, por exemplo, o facto de não termos, neste momento, uma rede de lares públicos de terceira idade suficientes para dar atempada resposta a toda a gente que necessita.

SM – Essas infraestruturas não eram financiadas pela União Europeia, ou pelo menos não o foram durante um largo período. Por exemplo, um centro de saúde, ou um hospital, ou um lar. Por isso é que houve a lógica de concentrar o investimento naquelas áreas em que o mesmo era comparticipado. As pessoas nem sempre entendem esta lógica de prioridades. Por isso é que se investiu massivamente em infraestruturas rodoviárias, porque também era mais fácil concluir projectos, lançar concursos, dispender dinheiro… porque executar as centenas e centenas de milhões de euros que vieram para a Madeira, não era fácil. Era um desafio enorme. E a RAM tinha que ser capaz de ter condições para gastar todo este dinheiro.

FN – E ao fazê-lo não se alimentou também um “lobby” do betão?

SM – Não diria que se tenha alimentado um “lobby” do betão. As empresas obviamente adaptaram-se, viram as oportunidades que todo este investimento iria trazer, e isso também levou à formação de empresas regionais de alguma dimensão, o que não deixa de ser positivo. Repare, o turismo criou grupos económicos na Região; o investimento em infraestruturas económicas e físicas também levou à criação de grupos económicos na área da construção civil. E acho que isso foi positivo, isso também permitiu o desenvolvimento da nossa Região,

FN – Mudando  para o presente, a situação hoje é bastante diferente do que já foi. É muito mais difícil obter fundos comunitários, esses fundos são fiscalizados de uma forma bastante mais intensa que no passado… Que desafios é que, no seu entender, se colocam à Madeira perante esta nova realidade? Há coisas em que já não se pode contar com os fundos europeus, há outras em que ainda se pode, mas dentro de um controle mais apertado do que no passado…

SM – Acho que o grande desafio é negociar com a União Europeia. Nós estamos agora à beira de ter um novo pacote de fundos. Há um novo quadro financeiro em pespectiva. Ainda não está completamente fechado, a negociação já vem de há muito… Eu pessoalmente aqui na Assembleia [Legislativa da Madeira] tenho acompanhado todo esse processo negocial… Há uma perspectiva de diminuição de fundos, e acho que acima de tudo a RAM tem de preparar-se para fazer com que essa negociação, que ainda está em aberto, possa trazer pelo menos a manutenção dos fundos que nos dispusemos neste quadro financeiro que está a terminar. É um desafio muito considerável, mas acho que temos condições, se fizermos valer o nosso estatuto ultraperiférico, para pelo menos manter a intensidade de fundos de que beneficiámos nos últimos anos. Não vai ser fácil, a parte final desta negociação vai ser muito intensa, muito decisiva, mas eu creio que se as regiões ultraperiféricas se souberem posicionar, se os três ou quatro países que incluem essas regiões no seu território também tiverem uma estratégia conjunta, e têm-na com certeza, poderão aguentar o nível de fundos. Este aspecto é decisivo. Um outro aspecto que vai ser um desafio para a Região, mas que não é uma novidade porque isso já aconteceu durante este quadro financeiro, é aplicar os fundos com outro conjunto de prioridades.

FN – Quais deviam ser essas prioridades, do seu ponto de vista?

SM – Eu acho que o mundo vive uma revolução digital, a chamada quarta revolução industrial, que está a acontecer. A Europa está relativamente atrasada nessa revolução. Só para dar um exemplo, as 20 maiores empresas da economia digital são americanas ou chinesas. Não há uma única europeia. E isto diz bem da dificuldade da União Europeia e do conjunto dos países europeus em se integrarem neste processo extremamente disruptivo. E a RAM também não pode deixar de fazer tudo para tirar proveito desta dinâmica brutal a que se assiste em termos mundiais, nomeadamente ao nível do nosso turismo, e da educação. Neste mundo em evolução digital, mais importante do que por exemplo termos um sistema educativo virado para ministrar conhecimento, acho que é importante termos um virado, por exemplo, para o que os ingleses chamam o “long life learning”. Estarmos constantemente em actualização e a aprender. E também é importantíssimo termos um sistema educativo que nos ensine a sermos emocionalmente inteligentes. A inteligência emocional já está a ser ensinada em alguns currículos de alguns países europeus. Nós ainda estamos a dar os primeiros passos, neste desafio.

FN – Mas de que forma é que isso poderia chegar à Madeira, a revolução digital?

SM – A revolução digital também chega à Madeira, também nos inclui. Agora, nós temos é que ter condições para tirar o melhor proveito da mesma, e temos também que tratar de nos integrarmos nesta revolução digital, não ficarmos à parte, ou parcialmente afastados deste grande processo disruptivo que o planeta vive e que a Europa também tem alguma dificuldade em acompanhar. Nós não podemos deixar que a liderança da nova revolução industrial seja americana ou chinesa. A Europa tem de liderar também essa revolução digital. Nomeadamente, apostando em mais inovação, num sistema educativo mais virado para a inovação, que permita às empresas europeias, portuguesas e regionais ter a possibilidade de retirar proveito económico destas brutais dinâmicas dos dias de hoje.

FN – Está a falar disso e estou a pensar por exemplo em áreas essenciais de aplicação, em empresas como a ACIN, por exemplo, que apostam no digital como área de investimento… Aliás o próprio presidente do Governo Regional num discurso recorrente, a uma dada altura, insistia no que ele designava de “Brava Valley”, que queria que funcionasse como um pólo de desenvolvimento desse tipo de empresas na RAM… A verdade é que até hoje pouco mais se vê que a ACIN… Temos também pólos de investigação na Universidade da Madeira…

SM – Precisamente. Sim nós temos alguns bons casos de empresas [nessa área]. Temos de dar mais dinheiro à investigação e desenvolvimento, no sentido de favorecer o empreendedorismo… O sistema educativo acho que tem de ser reformado para aproveitarmos melhor toda esta vaga digital… E os fundos estruturais que nós viermos a receber no próximo quadro, têm que ter em conta esta nova realidade. É evidente.

FN – Para além do investimento nesse tipo de empresas, algo que estava a pensar era o aproveitamento que, por exemplo, a APRAM pode fazer destas tecnologias digitais para promover a Madeira. E parece-me que está a fazê-lo. Parece-lhe que poderia ser feito mais do que já está a acontecer?

SM – Acho que sim, e acho que vamos ter condições, e fundos que podem ser aplicados na maioria das formas promocionais da nossa Região. O mesmo é dizer do desenvolvimento das empresas turísticas.

FN – O senhor, que teve na Europa uma intervenção na área da Economia e Finanças, conhece da competitividade empresarial ao nível europeu e mundial, está consciente certamente de que é extremamente difícil… há casos de sucesso na Região, mas as empresas que apostam no mundo digital, estão a apostar numa área que é extremamente difícil, competitiva e de difícil sucesso…

SM – Mas isso não nos deve levar a baixar os braços. Tudo deve ser feito para trazer, e desenvolver, e criar mais empresas. Temos aqui um centro de “startups” precisamente com esse objectivo. Ser uma incubadora de…

FN – O problema das “startups” é que muitas delas não passam disso mesmo.

SM – O nível de mortalidade das “startups” é imenso, e não é apenas na Madeira. Sabemos isso. Se em cada 20 ou 30 se aproveitarem duas ou três, é fantástico. Há que falhar, para que outras possam ter sucesso. E também não devemos ver o falhanço como uma coisa negativa. Há empreendedores que hoje tiveram um sucesso enorme, mas tiveram episódios de grandes falhanços dos seus produtos empresariais. E se calhar até foi o falhanço, a experiência e o ensinamento que se retira desses fenómenos e dessas ocorrências que depois no futuro permitem posturas diferentes no futuro para experiências bem sucedidas.

FN – Os novos eurodeputados madeirenses vão enfrentar um quadro bastante diferente daquele que conheceu. A Europa está-se a desagregar. Enfrenta radicalismos, inseguranças, a ameaça do terrorismo, o retorno do preconceito…

SM – …o problema das migrações…

FN – Exacto. É uma Europa diferente, onde há também menos dinheiro para distribuir por aqueles que tanto o desejam para desenvolver as suas realidades regionais. Um deputado nestas circunstâncias peculiares, numa altura em que se verifica o “Brexit” e em que coexistem todos estes problemas “macro”, terá condições para fazer valer os interesses regionais?

SM – Acho que traçou um excelente retrato do panorama actual em termos europeus. É bem mais depressivo do que era antes. Há pouco falava-lhe num contexto de até alguma euforia… Hoje de facto a situação é assim. O ambiente é bem mais negativo. Há bem mais cepticismo e dúvidas sobre o futuro da União Europeia. Acho que nunca a UE atravessou um período tão complexo… Acho que este adjectivo classifica bem a actual situação, como o actual momento. Mas, isso não nos deve levar a pôr em dúvida a valia da UE. E eu sinto que há muitas vozes que começam a pôr em causa a valia do projecto europeu. Mas nós temos de ter em conta hoje que a Europa… Acho que há dois grandes desafios. Já lhe falei num, que é a revolução digital. Falo noutro, que é crucial para a nossa sobrevivência, que é o das alterações climáticas. E estes dois grandes desafios são transnacionais. Nenhum país por si está em condições de, sozinho, os enfrentar. E só por isso, só para tentar fazer face à revolução digital, tentar ter um contributo fundamental para a sobrevivência do planeta ameaçado pelas alterações climáticas, a UE faz todo o sentido. O ambiente é mais difícil, é mais negativo, é algo até depressivo? É. Mas eu acho que temos que remar contra esta maré, e levantar bem alto a bandeira da União Europeia. Eu não entro na moda de criticar e deitar lenha em cima do projecto europeu. Eu continuo a ser um europeísta. Um europeísta pragmático, positivo, realista. Acho que tem que haver, se calhar, menos intervenção europeia em algumas coisas e mais noutras. Estes são os desafios, mas que tornam também mais aliciante o trabalho que se pode vir a desenvolver no Parlamento Europeu. Acho que vai ser mais complicado. O ambiente é mais difícil, mais complexo.

FN – A questão das alterações climáticas, de que falou, e dos problemas ambientais, é algo que nos afecta directamente na Região. É visível. Inclusive nas catástrofes naturais que têm ocorrido.

SM – Sim, e se calhar muito do que se passa com o aeroporto [as condicionantes dos ventos] também tem a ver com esse fenómeno. É, portanto, um assunto que nos diz muito. E por exemplo, nesta área, pode ser desenvolvido um trabalho muito interessante pelos deputados ao PE… O campo das alterações climáticas, protecção do meio ambiente, defesa de políticas para contrariar as alterações climáticas, e também para fazer com que a Europa tenha uma palavra de liderança na revolução digital… Acho que os deputados das regiões ultraperiféricas podem ter um papel aí importante, nomeadamente na captação de fundos para desenvolver a revolução digital na nossa região.

FN – E quanto aos sectores tradicionais da RAM? Como lhe parece que poderão continuar a progredir?

SM – Terão de continuar a ser acarinhados. Nós não nos podemos dar ao luxo de dispensar o que quer que seja. O contribuas pescas, o contributo da agricultura… dos sectores artesanais como o bordado… Temos ainda muito emprego e muitas pessoas a dependerem destes sectores. Acho que a defesa desses sectores tradicionais é importante para a nossa coesão interna, económica e social, a nível da Madeira. Temos de os acarinhar. Veja-se o que se está a passar com as pescas, onde depois de um grande processo negocial, conseguimos garantir o financiamento de novas embarcações da nossa frota pesqueira, e também para a renovação dessa frota.

FN – Hoje vive-se melhor na Madeira do que se vivia no período em que era eurodeputado? Enfrentámos entretanto um agravamento do desemprego e outras condições de vida… Caíram sobre nós os efeitos de uma crise e de uma dívida regional mais ou menos varrida para debaixo do tapete, com as consequências que sabemos… Que avaliação faz?

SM – A dívida está a ser gerida, está a ser paga, tivemos a capacidade de a reduzirmos substancialmente, coisa que o país, por exemplo, não fez… A dívida pública nacional em termos absolutos aumentou, nos últimos anos… Na RAM, ao contrário, ela desceu, e desceu significativamente, cerca de 1200 milhões, uma percentagem significativa da nossa dívida pública. Isso custou-nos muitos sacrifícios, é um facto, a todos os madeirenses… Mas acho que sem uma dívida pública controlada e gerível, pagável, acho que seria bem mais difícil, a nossa vida no futuro.

FN – Acha que se vive melhor hoje em dia?

SM – Acho que hoje, já muitos dissipados todos os momentos mais gravosos da crise, acho que hoje vivemos melhor do que há quinze anos, quando eu andava no Parlamento Europeu. Não tenho dúvidas quanto a isso. Se me dissesse para comparar com os anos críticos da crise, eu aí responder-lhe-ia de outra maneira. Mas hoje, com o emprego ao nível que está, com o nosso Produto Interno Bruto ao nível que está, acho que temos condições de vida superiores àquelas que existiam há quinze anos atrás.

FN – Mas nessa altura a taxa de desemprego na Região era muito mais baixa.

SM – Não era significativamente muito mais baixa… Hoje andamos à volta dos 8, na altura andaria nos 5, 6 por cento… Temos ainda trabalho a fazer para a reduzir mais. Acho que ela vem numa significativa trajectória descendente há muitos meses, e temos de continuar assim…

FN – A taxa de desemprego também tem descido na Região porque muita gente tem emigrado…

SM – Sim, mas também é verdade que muita gente também tem imigrado para a RAM. O movimento é bidirecional. Se tivermos em conta todos aqueles que se inscreveram no Instituto de Emprego vindos da Venezuela, isso também de certa forma explica os números mais altos que temos relativamente à média nacional.

FN – Na sua intervenção europeia creio que também lidou com uma comissão relacionada com a América do Sul… De que forma lhe parece que poderá criar um grave problema à RAM a situação que se vive neste momento na Venezuela? Não temos capacidade para lidar com um regresso massivo de emigrantes…

SM – Não, nós sozinhos não temos. Se esse cenário radical, de um afundamento total da Venezuela, uma queda no caos, se verificar, não temos condições sozinhos para enfrentar uma situação dessas. Nem sequer em conjugação com o país. E por isso também é importante a nossa integração na União Europeia. Teríamos que forçosamente beneficiar da ajuda europeia para gerir uma situação de catástrofe humanitária como seria uma situação dessas, com a vinda de dezenas de milhares de compatriotas nossos para a Região, e para o país.

FN – Quanto ao que está a ser feito neste momento, parece-lhe adequado?

SM – Eu próprio tive oportunidade de liderar esse esforço ao nível do Governo Regional, enquanto lá estive, tive a tutela das comunidades… E em conjugação com o Governo da República, construímos um modelo de cooperação exemplar, que nos permitiu criar condições para recebermos da melhor forma todos aqueles que escolheram a Madeira para regressar, em variadíssimos sectores. Ao nível da educação, nenhum jovem que veio da Venezuela ficou sem acesso ao sistema de ensino, sem acesso ao sistema de saúde, sem acesso aos apoios da segurança social, sem acesso a todos os produtos que temos para a formação profissional, para a ajuda ao emprego… Tudo isso foi também disponibilizado aos nossos compatriotas, que regressaram nas condições que sabemos. Acho que é constatável que essa integração se tem produzido sem sobressaltos de maior. E já entraram na Região à volta de cinco mil pessoas, o que, para a nossa dimensão, não deixa de ser um impacto significativo.