Um futuro de salário mínimo

icon-henrique-correia-opiniao-forum-fnAcho escandalosa a “promiscuidade” que existe entre diferentes instituições e algum poder económico, para não dizer muito poder económico. Cada vez mais, cada vez pior, na forma e no contéudo, mesmo que as pessoas não se apercebam à primeira vista. Numa segunda vista é diferente, mas poucos chegam à segunda vista.

Aquela hierarquização que havia, que até colocava a comunicação social como uma espécie de “quarto poder”, provavelmente com alguma dose de exagero e como forma de “provocação” aos poderes “consagrados”, surge agora completamente desvirtuada. Tinhamos o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judicial. E aquilo que alguns ainda se lembram, por comparação com a amnésia generalizada, que se chamava de “separação de poderes”. Chamava-se. É passado. Há um poder, agora, que ultrapassa isso tudo. Valores e tudo. É tudo uma questão de números.

Qual separação? Constitucionalmente, é tudo muito bonito, na prática funciona precisamente ao contrário. E admiram-se de estarmos a criar uma sociedade do TER e não uma sociedade do SER. Pudera. Qual foi a parte que não perceberam? A esmagadora maioria da juventude está de mãos e pés atados, os que não trabalham mas também os que trabalham, com formação superior e com vencimentos que rondam os 600 euros quando não é mesmo o ordenado mínimo. Ou até menos, aquele período experimental em que as empresas dão 200 ou 300 euros durante seis meses como contributo para o transporte. Pequeno “contributo” de um lado, exigência máxima do outro. E fiscalizar, diz alguma coisa?

Anda tudo com muita dependência do económico e do resto que vem atrás. Uma nova geração precária em termos de emprego, precária em termos de dignidade, sem futuro à vista, sem possibilidade de poupança, sem horários, sem vida própria mas vendo, todos os dias, sem saber como, um triunfalismo hipocritamente efusivo, que o desemprego baixou não sei quantos pontos em não sei quantos anos. Sabemos como funcionam as estatísticas, valem o que valem. É a história dos frangos, temos quatro pessoas, só uma comeu quatro frangos, mas a estatística diz que cada um comeu meio frango, mesmo sabendo que os outros três ficaram à fome. É mais ou menos isto., obviamente com ironia que algumas situações merecem.

É um poder que aumentou de forma asfixiante depois da entrada da “troika” em Portugal, e percebe-se porquê, que em síntese deixou o País com medo, com medo porque o País podia ir à falência, em função da falência dos políticos que o levaram a isso, e passou a ser preciso pagar mais e ganhar menos, em nome da recuperação. Mas também com medo nas empresas, mesmo naquelas que estavam bem financeiramente, mas mesmo assim com medo que levou à redução de vencimentos primeiro, nunca repostos como já era na altura expetável, mas depois levou mesmo a despedimentos descaradamente encobertos pelo poder político, também ele já refém desse poder económico, inclusive aquele poder que, de tanto poder de ostentação, já anda pelos tribunais. E, como diz o povo, a procissão ainda vai no adro.

O mundo global foi um pretexto. Um pretexto para cortes com a bandeira da competitividade, a tal competitividade que, diziam eles, traria maior dinâmica de produção às empresas, logo maior capacidade de criação de emprego. Este é um princípio básico, nem era preciso bandeira. E talvez a produtividade tenha aumentado, os lucros das empresas também, mas efetivamente os empregos criados não foram tantos como dizem, além de que aqueles que se criaram são maioritariamente precários, sob todos os aspetos, dando a ideia de que o desemprego baixou, numa engenharia estatística que vem de longe e que, só para quem não quer ver, é que acredita nos números sem reservas. Baixar até pode ter baixado, estatisticamente, mas não foi pela melhoria considerável do mercado de trabalho, foi com precariedade, muita mesmo, pela emigração, agora mais qualificada, logo quem perde é o país, e pelas fórmulas “mágicas” que conhecemos para entreter.

É claro que o poder económico é importante e é determinante, os empresários devem ser incentivados, na forma de incentivos claros e transparentes, com vista a proporcionar uma situação favorável de produtividade e lucro que possibilitem a criação de emprego. Outro princípio básico, ter empresários empreendedores, viabilizar emprego. O problema não é esse, o problema é mesmo de conceito, da forma como se encara o emprego e da forma como muitos empresários (felizmente há exceções nas quais se depositam as esperanças que restam) abordam a questão dos trabalhadores, mesmo quando para fora têm um discurso, aquele discurso “politicamente correto”, de que a componente humana é o grande património. Se formos lá ver, e temos casos como chuva, pagam muito bem a meia dúzia para arrasar a outra meia e falam como se cada um dos trabalhadores ficasse a dever a vida inteira o tal emprego de 500 ou 600 euros, confundindo gratidão e respeito, com vassalagem e subserviência eterna.

É isto que faz comprometer o futuro, o resto, o que se possa dizer em números, é aquilo a que se chama “engenharia financeira e política”. É para a dialética dos partidos, conversa para consumo imediato, sem grande contéudo. Compreende-se o contexto, mas não abusem de alguma inteligência de algum povo. E hoje, há um problema acrescido: como todos utilizam a mesma “receita”, os partidos estão muito iguais nos comportamentos e nas estratégias, que um dia a democracia será decidida não pelos melhores, mas pelos menos maus ou mais habilidosos, o que é dramático. Estou para aqui a dizer um dia, mas isso já acontece em muito “sítio”.

Há dias, em entrevista ao “dinheiro vivo”, o presidente da Câmara de Comércio e Indústria, Bruno Bobone, dizia, na sequência de uma questão colocada pelos jornalistas sobre ordenados dignos, com uma clareza que todos sabem: “Não os temos. Continuamos a ter uma política de discussão, dentro das empresas, dentro das organizações, em que estamos sempre a discutir o mínimo indispensável e o que deveríamos estar a discutir é o que é minimamente aceitável para que uma pessoa tenha uma vida digna”. Tudo dito, é isto que temos, estamos a criar uma sociedade sem possibilidade de poupança, sem direitos sociais, com previsibilidade de reformas baixas, se houver. Ou seja, sem futuro. E anda tudo “nas nuvens” com números que valem o que valem, números. Como são as pessoas, hoje. Estamos a construir um futuro de salário mínimo. Ou seja, um futuro sem futuro.

Enquanto povo com formação católica, fica-nos a Fé para nos agarrarmos. A Fé muito pessoal, muito de cada um, interior. Mas até não fiando muito na Igreja, que em matéria de estratégia e de cumplicidades, também há muito tempo anda no topo da “moda”.