O contencioso da autonomia e a passadeira rosa

«Contencioso da autonomia» foi um conceito gerado no tempo dos governos do Dr. Jardim, e provavelmente da sua autoria, que pretendia traduzir a dialéctica ou as tensões decorrentes de aspirações e reivindicações da Região Autónoma, não aceites nem satisfeitas, pelo menos no imediato, pelo Estado Português. Algumas vezes, o conceito atingiu a conotação máxima – contencioso do aprofundamento da autonomia –, como, por exemplo, em 2014, quando se reivindicava um novo modelo do sistema autonómico (Diário de Notícias, Funchal, 20-09-2014, p. 13).

Nem sempre a Região beneficiou desse clima de permanente confronto, chegando-se mesmo a situações bizarras, mas a verdade é que muito do que se conseguiu, no âmbito da autonomia ou no domínio financeiro, se deve à capacidade de reivindicar com firmeza e de apresentar projectos credíveis.

Neste contexto de afirmação da identidade regional, elevou-se o nível de auto-estima dos porto-santenses e madeirenses, sobretudo pelo melhoramento das suas condições de vida e o reconhecimento nacional e internacional de muitos projectos e eventos regionais.

Continuam hoje muitas questões pendentes entre os Governos Regional e da República, que o «murro na mesa» de Paulo Cafôfo (JM, 12-04-2018) ou a última visita do Primeiro-Ministro ao Funchal (21-05-2018) não conseguiram resolver, com prejuízo dos madeirenses e porto-santenses, porque, na realidade, António Costa, como líder do PS, tem objectivos definidos para as eleições na RAM e um calendário adequado aos seus propósitos.

Depois de uma ardilosa substituição da liderança socialista na RAM, abriu-se uma passadeira rosa para o presidente da Câmara do Funchal, como candidato a presidente do Governo Regional nas próximas eleições legislativas, que, assim, deu o dito por não dito quanto ao cumprimento do mandato autárquico, defraudando a maioria dos funchalenses.

Na qualidade de candidato, falou no último Congresso Nacional do Partido Socialista (26-05-2018), realizado na Batalha, o que tem tanto de curioso como de significativo.

Curioso, porque, na reunião magna de uma organização partidária, abriu-se a tribuna a um não filiado, que se apresenta como candidato do mesmo partido às eleições de uma Região Autónoma, cabendo papel menor ao presidente do PS-Madeira, situação previsível e com natural propensão para acentuar-se.

Dessa intervenção nenhuma ideia interessante para a governação regional ressumou, tendo apenas sobressaído a vontade de inscrever António Costa na História, como o Secretário-Geral do PS que venceu eleições nas duas Regiões Autónomas.

Revela-se também significativo, porque o percurso foi feito ao contrário do habitual. Em vez de ser um líder de uma força partidária da RAM que, pela sua militância e programa, se afirma no Congresso do seu partido, trata-se, sim, de um candidato, dito independente, com popularidade no Funchal e que venceu duas eleições autárquicas liderando coligações, que o Secretário-Geral do PS astutamente catapultou para a disputa das regionais. Compreende-se, assim, a vontade de Paulo Cafôfo em retribuir tal gesto com a inscrição de António Costa na História.

Todavia entre o querer e o ser há um longo caminho, onde a passadeira rosa e a dialéctica periferia/centro terão de se confrontar.

Não acredito em projectos de poder para a periferia, arquitectados no centro, embora preveja que a máquina da propaganda, abrigada na Casa do Concelho, será reforçada com artilharia pesada para convencer ou domar o eleitorado, agitando, até à exaustão, o enganador voto útil.

A nós, madeirenses e porto-santenses, caberá distinguir entre a força da propaganda, aliada aos grupos económicos que emigraram da Rua dos Netos para o Largo do Colégio ou que jogam nos dois tabuleiros, e os verdadeiros interesses desta Região. Convém não alinhar com o artificial. Por vezes, o pechisbeque faz-se passar por metal precioso. Prudente é mesmo não contribuir para maiorias soberbas, de má memória na história.

À própria dinâmica da autonomia está, intrinsecamente, associado o contencioso. Muito do que temos hoje veio a ferros. Sempre foi assim! Não parece, por isso, estar enterrada tal dialéctica, ainda que a passadeira rosa se venha a apresentar com mil e uma promessas de mágica solução de todos os nossos problemas, numa programada colonização, seiscentos anos depois do povoamento deste arquipélago.

Extinguiu-se aquela imagem estereotipada do caseiro de cabeça vergada na porta dos fundos da casa do seu senhorio. Mas diferentes mesuras ou agachamentos foram entretanto sendo cultivados e novos procuram agora implantar, com uma sofisticação nunca antes vista e até uma porçãozinha de filosofia de trazer por casa.

Na verdade, já vão cansando os jogos de poder que penalizam as sociedades insulares, fazendo sempre depender a resolução de determinados assuntos regionais das estratégias e dos calendários partidários definidos em Lisboa.