Num dia em que o Teatro está em foco, o FN reproduz um texto da autoria de Leonor Martins Coelho, professora da Universidade da Madeira.
“Celebra-se hoje o dia mundial do teatro. Múltiplos exemplos podem ser destacados, quer pela forma inovadora dos padrões dramáticos no momento da sua criação, quer pelo contributo desta linguagem artística na problemática da educação cultural, quer, ainda, pelo modo como é recuperada a escrita dramatúrgica pelas diversas companhias de teatro no momento da encenação.
Deixo apenas algumas notas sobre Os Gladiadores, um texto de Alfredo Cortez (1880-1946), publicado em 1934, encenado em janeiro desse mesmo ano pela Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, em Lisboa, vaiado na época por um público pouco dado a novidades experimentais, a expressionismos desconhecidos ou a críticas sociais acérrimas.
Para quem desconhece o texto, saliento apenas que se trata de um exemplo distinto no percurso do dramaturgo português por incorporar o expressionismo alemão, o surrealismo francês e o experimentalismo de Pirandello. Esta sátira cómica aponta(va) e desvenda(va) poderes e contrapoderes entre homens e mulheres. Na verdade, trata-se de uma luta de toda a Humanidade e da mecanização do próprio Indivíduo.
Os Gladiadores de Cortez, com o subtítulo “caricatura em três atos”, apresenta uma nota do autor antes do início do primeiro ato da peça. Desta forma, a plateia é elucidada: trata-se de uma caricatura mundial e automática do Homem e dos Tempos. De facto, a peça não se resume ao conflito entre feministas (saliento aqui, a título de exemplo, o desempenho de Margarida Gonçalves) e o poder masculino.
Este texto, que foi agora levado a palco pela Associação Teatro Experimental do Funchal, questiona mitos antigos e modernos de uma sociedade barroquizante (destaco, assim, as múltiplas identidades de Xavier Miguel). No desdobrável desta versão encenada por Eduardo Luíz, a partir do texto de Alfredo Cortez, aparecem as duas personagens centrais: Marcos de Góis (o Belo-Bruto) e Ester Vieira (a protagonista casou e sepultou dezanove maridos. Ela virá, naturalmente, a enterrar a próximo cônjuge e ultrapassará, qual Fénix renascida, o nascimento de um filho peculiar, corpulento e ávido de poder). Saliento a Direção de Cena de Mariana Faria, a Criação de Cenografia e Adereços de Paulo Sérgio BEju, as Coreografias de Casey-lee Binns, a Seleção e Criação de Efeitos Sonoros de Daniel Rodriguez. Muitos outros talentos nas suas artes poderiam ser referidos basta para tal consultar a respetiva ficha técnica.
Mas interessa aqui destacar a experiência em que o humor, a crítica, o riso, o questionamento ou a inquietação desvendam ao espetador uma pretensa luta entre homens e mulheres. São três momentos de um combate sem sentido onde (supostamente) o poder masculino tem de entender a impiedade feminina nas suas reivindicações:
– três momentos cénicos, antecedidos de uma explicação por umas das personagens envolvidas nesta escrita de cena, revelam, desde logo, que a peça não encena uma simples luta de géneros. Esta peça apresenta uma luta identitária, política, económica válida em todos os tempos e em cartografias diversas;
– três momentos distópicos lembram uma sociedade liquefeita. Esta não receia repetir estereótipos vãos de gladiadores que pretendem desviar o homem da dura realidade envolvente (imagens de guerra, de ditaduras, de despotismos e de conflitos passam num ecrã ao fundo do palco em momentos diversos da atuação);
– três momentos dicotómicos recordam a dualidade identitária pretérita, mas também a contemporaneidade dual e hipermoderna (dos tempos fascistas, dos momentos dos refugiados, de uma periferia em crise constante, de um ocidente indiferente e apático);
– três momentos cénicos jogam com questões genológicas, movimentos e sensibilidades literárias diversas, como acontece, por exemplo, com o contador de histórias que, logo no início, anuncia a vida da “Matrona”, a protagonista; recordo, ainda, a imagem da declamadora de um poema romântico tardio que, em jeito de paródia, embala o jovem casal;
– três momentos interligam vozes do teatro antigo (qual coro a destinar o fatum), do teatro francês (recordando as três pancadas de Molière quando o pano se levanta) e do teatro pós-moderno. Desta pós-modernidade, o diálogo com a moda, com os media, com a dança e com a música diversa, cambiante e, não raras vezes, dissonante insiste na distopia da condição humana;
– três momentos, marcados por múltiplos trovões, anunciam conflitos cada vez mais latentes. Numa sociedade do vazio e da alienação, o poder do dinheiro e a corrupção estão sempre presentes. Esta peça evidencia, sobretudo, os que à nascença são ensinados a comandar e a exigir, como acontece com o bebé-fenómeno. Interpretado por Filipe Luz, fruto (improvável) do vigésimo casamento entre a “Matrona” e o “Belo Bruto”, esta voz aprende, desde cedo, os mecanismos de todas as idolatrias;
– três olhares sobre uma arquitetura (das cores, das linhas do palco, da apresentação de objetos em cena) da distopia marcam a recusa do(s) poder(es), mas também a aceitação dos ditames, da bajulação e dos subjugadores;
– três momentos desvendam a capacidade interpretativa do grupo. A capacidade física e a entrega foram, de facto, postos à prova. Prova superada de forma exemplar pelo talento dos atores e atrizes que deram vida e imprimiram energia à peça.
– três momentos onde um jovem casal anuncia a utopia. Todavia, o final reenvia para uma tonalidade disfórica que não reconhece a possibilidade de mudança. O paradigma dual, repetitivo e insano parece colocar-nos uns contra os outros, deixando pouco espaço para o devir de uma Humanidade outra: mais equitativa, mais tolerante, menos invasiva.
Acresce, nas pausas cénicas, a crítica à falta de meios no campo da cultura, em geral, do teatro, em particular. Surge, por conseguinte, a crítica à valorização (sempre tão atual) dos nossos governantes no que diz respeito ao numérico e ao lucro em detrimento da Arte.
Um espetáculo que vi e revi. Este espetáculo podia, decerto, ser levado a outros palcos e a outros públicos numa circulação de grupos e de intervenientes num processo cultural e educativo sempre profícuo.