“A secretaria da Saúde acende uma luz e depois apaga, as pessoas deixam de acreditar”, acusa Pedro Freitas, da Ordem dos Médicos

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Pedro Freitas lamenta que a Ordem dos Médicos não tenha sido ouvida em relação ao novo Hospital.

O estado da Saúde Regional é este: fala-se muito e faz-se pouco. É a política do “quase”. O dinheiro do novo hospital está quase mas não consta do Orçamento de Estado, a primeira reunião da comissão de acompanhamento está quase a realizar-se, a falta de médicos em muitas especialidades está quase resolvida, a falta de medicamentos está quase solucionada. É assim, de forma direta e pragmática, que o responsável pela Ordem dos Médicos na Região define a situação que o setor atravessa e que continua a merecer preocupação, tanto por parte dos profissionais como por parte dos utentes. Num momento em que estamos a menos de 24 horas da greve no sul e Ilhas.

Investimento a decrescer na Saúde

Pedro Freitas considera que “as pessoas são aquilo que a Saúde tem de melhor, mas mesmo as pessoas começam a ficar cansadas, desalentadas, sem vislumbrarem futuro. E isso limita um pouco aquilo que podem fazer”. O entendimento que o Estado tem da relevância da Saúde, como lembra, expressa-se no investimento que tem vindo a decrescer, “passando de 8 por cento do PIB no tempo do governo de Passos Coelho para 5 por cento neste Governo atual. Isto revela muito daquilo que o Estado pensa da prestação do Serviço de Saúde. Não podemos gastar menos e querer um serviço melhor com mais exigências, que hoje se colocam com o envelhecimento da população, como toda a gente sabe”.

Governo fez normativa que não serve para nada

Recorda o que está em cima da mesa das negociações e que motiva a paralisação que ocorre parcelarmente pelo País, sendo que na Região é a 25 de outubro, culminando com uma greve global nacional a 8 de novembro. Fala que o governo central anuncia desbloqueamento de carreiras, mas “é uma falácia”, uma vez que, como explica, “a progressão é feita mediante uma avaliação do SIADAP (Sistema de Avaliação de Desempenho da Carreira Médica) , que não foi feita em praticamente nenhuma zona do País, também não o foi na Madeira. Quando não é feita a avaliação, a lei diz que é atribuído um ponto, o que perfaz um total de sete pontos em sete anos de existência do sistema, quando para progredir são necessários 10 pontos. É impossível alguém progredir. Na prática, o governo já sabe que fez uma normativa que não serve para nada”.

Concurso para consultor com “numerus clausus”

Para Pedro Freitas, o médico está em permanente avaliação. Diz mesmo não conhecer “outra carreira que esteja sujeita a tanta avaliação como a carreira médica. Em diferentes sentidos, até pelo público em geral, que hoje é cada vez mais crítico. Mas temos avaliações internas. Ainda recentemente, foi aberto concurso para consultores, mais uma vez entregámos o currículo e vamos ser avaliados por um júri, que até nem é regional. A maior parte das especialidades não será alvo de avaliação regional. Por isso, acho que O SIADAP nem faz sentido”.

Aponta outra situação dentro do mesmo concurso, que pela primeira vez abre com “numerus clausus”. Na prática, “há muita gente que vai passar e não vai progredir porque fica fora do teto definido para progressões. É claro que estas situações provocam descontentamento nos profissionais, além de que o sistema não diz o que se faz com aqueles que passam mas não entram, se fazem exames de novo numa outra situação , mas também não diz como fazer em relação à possibilidade de haver assimetrias no País. E se os colocados ficarem todos em Lisboa e Porto?”.

Se fossemos pilotos ou estivadores a situação talvez fosse outra

A greve é uma matéria da esfera sindical, tem ouvido críticas de colegas em relação ao modelo de luta parcelar. Teme que os eles não participem como esperado na paralisação do dia 25 de outubro. Depois destas greves agendadas em diferentes datas para várias zonas do País, há uma greve global a 8 de novembro. “Soube de colegas que não veem com bons olhos esta greve feita em partes”, refere Pedro Freitas, sublinhando que “existe aqui outro tipo de preocupação, mais social, de garantir o serviço. Se fossemos pilotos de aviação ou estivadores, que parassem aeroportos e portos, talvez a situação fosse outra e obrigasse o Governo a admitir as especificidades da Saúde e as reivindicações”.

Tempo passa, problemas subsistem

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Já foram feitas avaliações para atribuição da idoneidade formativa a alguns serviços, na Medicina Geral e Familiar, Neonatologia e Ortopedia, mas desconhecem-se os resultados. Pedro Freitas diz que continuam a existir “problemas noutros setores”.

Já no que se prende com o Serviço Regional de Saúde, o presidente do Conselho Médico da Ordem na Madeira reafirma críticas já antes levantadas. Passa o tempo, mas os problemas subsistem. Há casos todas as semanas, o setor tem a sensibilidade que se sabe, tapa-se uma lacuna e aparece outra, é a história do lençol curto, tapa os pés destapa a cabeça, uma infinidade de problemas e um conjunto de soluções à espera de ver colocar em prática. Entretanto, há anúncios de que o novo hospital vai avançar, que estão já garantidas obras, que a via verde do medicamento está em “passo acelerado”, que a falta de médicos tem solução para dias e que as listas de espera serão definitivamente resolvidas. Afinal, a verba para o hospital ainda não está garantida e as esperanças, agora, são colocadas na primeira reunião da comissão de acompanhamento, que ainda não tem data para reunir.

Secretaria da Saúde diz que muito vai acontecer, mas não está a acontecer nada

À questão “como se reage a este quadro? “ Pedro Freitas responde que “diálogo é coisa que não tem faltado. Fala-se muito, mas não vemos medidas concretas. A atual secretaria regional da Saúde diz que muito vai acontecer, mas como toda a gente vê não está a acontecer nada, está tudo ainda em estudo. Era o dinheiro que já estava garantido para o novo hospital, mas que não está, era a comissão que, afinal, ainda nem fez a primeira reunião. A secretaria está a acenar com uma bandeira que não é real. É um modo de estar que os profissionais criticam. É melhor o Governo Regional ser realista. Ou temos psiquiatras ou não temos. Ou temos neonatologistas ou não temos. Não vale a pena dizer que temos protocolo quando a situação está na mesma. Não vale a pena dizer que vamos ter um novo bloco operatório quando ele não está em execução. Não vale a pena andar a dizer que há soluções quando elas não aparecem, é desmotivante para quem trabalha. A secretaria da Saúde acende uma luz ao fundo do túnel e depois apaga. As pessoas deixam de acreditar. Penso que a Madeira tem um problema nesse sentido”.

Avaliações já foram feitas a alguns serviços

Pedro Freitas desconhece o resultado das avaliações feitas aos serviços, para a correspondente atribuição de idoneidade formativa. Sabe que as mesmas já ocorreram na Medicina Geral e Familiar, Neonatologia, Ortopedia, diz que “continuamos a saber que há problemas noutros setores”, apontando uma reunião recente na Gastroenterologia, onde os médicos estão a fazer serviço noturno sem o apoio de enfermeiros especializados, tornando o serviço disfuncional. Quando isto acontece, não podemos dizer que vamos estudar o assuntos, o que é preciso é haver uma solução, não digo de um dia para o outro, mas dentro de um prazo razoável para dar resposta eficaz aos problemas. Não é isso que acontece. Estas disfunções estão a acumular no Serviço Regional de Saúde. As próprias listas de espera, se calhar alguém vem com uma bandeirinha a dizer que há um novo programa de recuperação com 300 mil euros para aplicar. Alguém sabe o que são 300 mil euros em Saúde?”.

Primazia ao humano em detrimento do betão

O líder da Ordem na Região tem, no entanto, uma esperança que a nova orgânica governamental, operada com alterações no Governo Regional, possa dar resposta a todos estes problemas de que enferma a Saúde na Madeira. Confia e espera que Pedro Calado, o vice presidente do Executivo de Albuquerque, sobre quem recai, entre outros pelouros, as Finanças, “tenha pela saúde das pessoas uma maior consideração, apoiando algumas medidas que no setor urge realizar. Esperamos que saibam reconhecer os esforços realizados, que focados em ajudar a população madeirense deem primazia ao humano em detrimento do betão. Urge olhar para a falta de recursos humanos, urge pensar na saúde verdadeiramente como uma das três responsabilidades do Estado de Direito, nomeadamente Saúde, Educação e Justiça”.

Às vezes temos que assumir a falência do sistema para resolver os problemas

As especialidades que estavam à beira da “rutura” assim continuam. É assim na Psiquiatria, é assim na Neonatologia, entre outras. Mas há uma situação que Pedro Freitas não tem dúvidas em colocar-se ao lado de Pedro Ramos. O secretário assumiu que a solução provisória pode passar pela contratação de serviços ao exterior, ao privado, na Região, o que na opinião do médico, é “uma solução bem vinda, para resolver problemas imediatos das pessoas, que no fundo é aquilo que é importante resolver. É claro que é assumir a falência do sistema, mas às vezes temos que admitir essa falência para resolver os problemas. Se pudermos tratar as coisas localmente, tanto melhor. Sempre tivemos um serviço convencionado, porque não aproveitá-lo se o SESARAM não consegue dar resposta? Numa solução de curto prazo, aplaudo”.

O privado só existe porque o público não dá resposta

Há quem seja de opinião que todos estes atrasos com o Hospital e algumas medidas que estão a ser pensadas, empurram o sistema para as mãos dos privados, alguns deles já em curso com a construção de unidades de saúde. Pedro Freitas entende a interpretação, mas diz que essa preocupação “não resolve o problema das pessoas”, apontando que “o privado só existe enquanto solução porque o sistema público deixou esse lugar vago, não dá resposta eficaz. Os privados que investem na Região não são monstros, estão a tirar partido de uma realidade, o que de resto, neste domínio, também acontece no resto do País. E lá vamos bater ao mesmo do Estado ter desinvestido na Saúde”.

Corremos o risco de termos uma estrutura gigante com falta de pessoas capazes

Pedro Freitas teme que esta falta de investimento público no setor, tanto lá como cá, acabe por ter influência na falta de profissionais, o que será preocupante na futura estrutura hospitalar na Região. Diz mesmo que “corremos o risco de termos uma estrutura gigante, com falta de pessoas capazes, porque muitos saíram descontentes com o sistema, e não haver gente para por o Hospital a funcionar como serviço moderno e eficaz. Este é o meu receio. Esperemos que os dois secretários saibam compreender isso e incentivar a produção protegendo a população”.

Ordem dos Médicos não foi ouvida sobre o novo Hospital

Deixa, no entanto, um lamento, que tem a ver com a forma como o novo hospital foi concebido e continua a ser debatido, sem qualquer parecer da Ordem dos Médicos: “As ordens profissionais, tanto quanto sabemos, não foram ouvidas em relação ao novo hospital. O secretário, numa das reuniões, disse que as ordens iriam ser ouvidas mais para a frente, se calhar mais para a frente já está tudo resolvido. É uma das falhas deste projeto. E depois, ouvimos falar de erros que são cometidos, como sejam não estarem contempladas determinadas especialidades e algumas delas não estarem devidamente pensadas com as especificidades que têm e com os espaços que exigem”.