Tragédia do Monte: Culpa in vigilando, responsabilidade civil, extracontratual do Estado, criminal, disciplinar e política

A tragédia do Monte lança um conjunto de dúvidas e inquietações que passam, desde logo, pela propriedade do local onde ocorreu a tragédia e vai por aí fora até à eventual responsabilidade política.

Dando de barato que não há dolo (a investigação criminal irá apurar), haverá pelo menos negligência. A dúvida é quem é ou quem são os agentes? Além disso, juridicamente, dolo e negligência são conceitos diferentes de culpa.

Mas, para além dessa eventual responsabilidade criminal há, com certeza, responsabilidade civil.

Ora, em direito civil temos o que se chama de culpa in vigilando: aqueles que têm obrigação de vigiar tornam-se civilmente responsáveis.

O art. 491.º do Código Civil (CC) comina a responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância, através de uma presunção de culpa (presunção juris tantum), configurando uma situação específica de responsabilidade subjectiva pela omissão, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano, por omissão do dever de vigilância.

Trata-se não de uma responsabilidade objectiva ou por facto de outrem mas por facto próprio, baseada na presunção ilidível de um dever de vigilância (culpa in vigilando). [vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/09/2013 no âmbito do proc. 2654/03.7TBPBL.C1].

Os pressupostos do art. 491.º do CC são os seguintes: a existência de uma obrigação (legal ou convencional) de vigilância a cargo de um sujeito (pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, canónica ou não canónica); a prática de um facto ilícito por parte do vigilando e a causa de um dano a terceiro.

Aos lesados apenas compete provar a existência do dever de vigilância e do dano causado pelo acto antijurídico (ilícito) de quem devia ‘vigiar’.

Já ao obrigado à vigilância cabe ilidir a presunção, ou seja, demonstrar que cumpriu o seu dever de vigilância (se é que o fez) ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivesse cumprido (relevância negativa da causa virtual do dano).

Para a compreensão do “dever de vigilância” deve apelar-se ao “padrão de conduta exigível”, impondo-se a indagação casuística atendendo a vários factores como a perigosidade da actividade, a disponibilidade dos métodos preventivos, a previsibilidade do dano.

Mas mais importante do que diz o CC, o que releva sobretudo no caso sub júdice é a lei da responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas colectivas de direito público (Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, com as alterações subsequentes).

“Em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado, a ilicitude juridicamente relevante é a que resulta da violação de normas legais e/ou regulamentares ou princípios gerais aplicáveis, bem como a que decorre da ofensa a regras de ordem técnica e de prudência comum, pelo que nesta sede rege um conceito de ilicitude mais amplo que o consagrado na lei civil –cfr. artº 6° do DL 48.051 de 22.11.67”, revela o sumário de um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) de 2011 que condenou a Região a pagar uma indemnização a um condutor que viu o seu carro destruído pela queda de uma pedra na estrada da costa norte da Madeira (Porto Moniz).

Lembra também o sumário de um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN) que “como decorre da generalidade da Jurisprudência e Doutrina Administrativa, a responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos impõe que estes sejam responsáveis quando for de concluir que os seus órgãos ou agentes praticaram, por ação ou omissão, atos ilícitos e culposos, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, e que daí resultou um dano para terceiro” (vide acórdão de 06/11/2015 no âmbito do proc. n.º 00923/13. 7BEPRT).

Efetivamente, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas por atos ilícitos e culposos, pressupõe a existência de um facto ilícito, imputável a um órgão ou agente e a existência de danos que tenham resultado como consequência direta e necessária daquele.

O ato ilícito pode consistir num comportamento ativo ou omissivo, sendo que, neste último caso, a ilicitude apenas se verifica quando exista, por parte da Administração, a obrigação, o dever de praticar o ato que foi omitido.

Para além do caso já citado do carro que levou com uma pedra na costa norte da Madeira, houve ainda um outro caso, na Região, que foi alvo de apreciação administrativa de responsabilidade.

Tratou-se do caso da morte de aspirantes a guardas florestaias (caso Arieiro).

Em relação a umas das vítimas o caso da indemnização chegou à barra do Tribunal Administrativo do Funchal tendo findado com uma transação judical entre a Região e a família de uma das vítimas mortais.

Para além destas responsabilidades (civil e extracontratual) há ainda que aferir a eventual responsabilidade criminal (em curso), a eventual responsabilidade disciplinar de funcionários (por exemplo da CMF ou de outras entidades) e a responsabilidade política.

Sobre esta última, o cidadão eleitor tem a última palavra.