Editor de José Saramago explica a genialidade do escritor quando nem todos apostavam no Nobel

Zeferino Coelho falando aos professores sobre Saramago. Fotos FN.

Todos conhecem José Saramago mas poucos já ouviram falar de Zeferino Coelho, o editor dos livros do escritor, da chancela da “Caminho”. Editar e divulgar a obra de um homem controverso da literatura portuguesa como Saramago não foi tarefa fácil, sobretudo porque o autor tem o condão de fazer bulir com o politicamente correto, as convenções e apontar o dedo a quem condiciona a liberdade, ainda que travestidos de arautos da liberdade. Mas Zeferino Coelho apostou as fichas, como soi dizer-se, em Saramago e ganhou a aposta.

Hoje, sente-se um “editor realizado”, não só pelo privilégio que foi lidar e partilhar momentos com um escritor genial e imparável como também ser o único editor português de um escritor laureado com o Nobel da Literatura.

Na manhã deste sábado, o editor da “Caminho” veio ao Funchal, a convite do Grupo Leya, falar aos professores sobre um romance que também teve grande adesão junto do público e que começará a ser lecionado a partir do próximo ano letivo, no 12.º ano de escolaridade, na sequência das novas metas curriculares.

No seu estilo afável, de fácil contador de histórias e de memórias, quase que Zeferino Coelho torna simples o desafio assumidamente “difícil” que os docentes têm de ensinar O Ano da Morte de Ricardo Reis. “Este é talvez o livro que esteve mais tempo a aboborar na cabeça de José Saramago. Ele próprio explica que o romance é uma tentativa de digerir a relação difícil que tem com o poeta Ricardo Reis”, explicou Zeferino Coelho. Intrigava Saramago “aquela indiferença em relação ao mundo”, bem visível num dos versos da autoria do poeta da ataraxia e da vivência estóica e epicurista “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”.

Após larga controvérsia em torno da obra Levantado do Chão, eis que Memorial do Convento (em lecionação há anos no 12.º ano, até este ano letivo) e, em seguida, O Ano da Morte de Ricardo Reis alargaram o leque de simpatias nacionais por este escritor, até certo ponto olhado  com reservas por uma elite literata que desconfiava dos textos de um autodidata como Saramago, com o modesto curso de serralharia e mecânica, tirado na Escola Afonso Domingues, na década de 30 do século passado. Uma nota curiosa enfatizada pelo editor e amigo do autor: no currículo deste modesto curso, fazia parte a disciplina de literatura portuguesa que também terá semeado ou estimulado no escritor a paixão pela escrita.

Zeferino Coelho reconheceu que a leitura da nova obra do programa é um desafio para os professores mas poderá ser bem superado se estes tiverem como aliados boas estratégias de motivação, pequenas histórias do próprio escritor que ajudam a contextualizar e a compreender as opções da sua ficção.

O editor da Caminho recordou ainda que Saramago tinha uma grande mestria em encontrar títulos muito sugestivos. A propósito da nova obra do programa, o mesmo nasceu durante uma viagem que realizou até à então República Democrática Alemã, na década de 80 do século passado, como porta-voz da delegação portuguesa de escritores. Num intervalo, no quarto do hotel, o título como que lhe caiu do teto e nascia assim um novo romance da vida atribulada e contraditória do médico Ricardo Reis, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, numa cidade como Lisboa, sem liberdade de expressão, à mercê dos ditadores, com inequívocas assimetrias entre dominadores e dominados.

O tempo dirá como reagirão os estudantes à nova obra de Saramago, com as suas habituais infrações linguísticas porque o autor sempre se rendeu ao princípio oralizante dos textos, no seu ofício de eterno contador de histórias. Da parte do editor, o sucesso há muito que foi conquistado e o orgulho no escritor e ano amigo permanecem.