Pão-por-Deus ou Halloween? A luta do património imaterial português

Ilustração de José Alves
Ilustração de José Alves

Hoje, dia 1 de Novembro, a ilustração de José Alves evoca a antiga tradição do Pão-por-Deus. Um costume que remonta a um passado longínquo, muito anterior ao mais moderno Halloween, importado dos países anglo-saxónicos, especialmente dos EUA, e que hoje rivaliza em popularidade junto dos mais jovens.

Na realidade, porém, ambas as práticas estão mais próximas uma da outra do que se imagina. Ambos são rituais profanos, com um elemento de actividade lúdica anual, mas radicam nas práticas religiosas e nas suas crenças, e, antes delas, no paganismo. O dia 1 de Novembro é conhecido como o Dia de Todos os Santos, e que antecede o dos Fiéis Defuntos, quando se ia ao cemitério levar prendas para os entes queridos que já tinham falecido e lhes eram dadas oferendas em alimentos, incluindo pães, vinho e bolos. Este costume das oferendas alimentícias aos mortos é muito antigo e expressa-se em algumas das mais antigas culturas de que se tem memória, como a egípcia. Em todo o caso, é uma prática ligada ao paganismo, que sobreviveu entre os cristãos apesar de ter sido desencorajada desde tão cedo quanto, pelo menos, o século VI d. C.

“Pão por Deus/ Fiel de Deus, Bolinho no saco, Andai com Deus”; a rima é conhecida, e não diverge assim tanto da risonha ameaça “trick or treat” (travessura ou gostosura) do Halloween. O objectivo é o mesmo: bandos de crianças e jovens batem às portas da vizinhança, pedindo pão, bolos, castanhas, amêndoas, frutos secos. Na tradição norte-americana já se incluem outros itens, tal como na portuguesa mais recente, mas o que interessa é tratar-se de alimentos saborosos, e de ser uma alegre e concorrida brincadeira. Se o vizinho não cumprisse, ficava pelo menos a ameaça e o desafio, se não a autêntica partida.

Em certas localidades de Portugal era costume dar a primeira fornada do pão aos mortos, colocando-a à porta de casa para as “alminhas” que passassem; noutras punha-se mesmo a mesa para os antepassados falecidos; noutra ainda, os bolos que se faziam nesta época tinham desenhos de caveiras; e noutras as crianças andavam com abóboras ocas com caras desenhadas, do mesmo modo alegremente lúgubre que vemos nos filmes norte-americanos. Tudo isto tem em comum o culto dos mortos, a lembrança dos mesmos como se,  no fundo, fossem de alguma forma vivos e nos observassem, ou pelo menos, durante um dia do ano, as suas almas pudessem descer à Terra e andar por entre nós – é isto o dia de Finados, e aquele que imediatamente o antecede.

Agora, olhando para a modernidade, não restam dúvidas de que o Pão-por-Deus será um costume bem mais adaptado à nossa realidade do que o Halloween. Não só pelas raízes genuinamente ibéricas, mas também pela dura realidade da crise que actualmente vivemos. Muitas pessoas que faziam parte da chamada classe média, destruída por sucessivos governos incompetentes, pusilânimes e servis aos eurocratas de Bruxelas caíram pura e simplesmente no desemprego e na pobreza. A elas pouco falta para que andem a pedir pão, “por amor de Deus”, de porta em porta. Pouco falta para que tenham de apelar à caridade e solidariedade do vizinho para se alimentarem. Muitas já o fazem, e não apenas um dia em 365, mas o ano todo. Não são poucos os casos dramáticos que chegam ao nosso conhecimento. A dignidade desvanece-se quando desaparece o ganha-pão, quando cada dia é um exercício de sobrevivência. Aos portugueses, tirando a habitual casta de oligarcas e privilegiados, já pouco falta para esmolar, para andar de malga na mão a pedir comida. Talvez seja bom que não desapareçam algumas tradições que ainda subsistem, ligadas à generosidade. Para muitos podem constituir a derradeira esperança, perante um estado social falido. Mas deixemos, durante instantes, o cinismo de parte e alegremo-nos: antigamente, este era um dia de recordar os falecidos e ao mesmo tempo celebrar a vida por entre gargalhadas e curiosos rituais. E os miúdos mais pobres sempre manducavam mais qualquer coisinha saborosa. Halloween? É engraçado, sim, mas não somos americanos. A nós o Pão-por-Deus!