Uma leitura sobre a “infinita misericórdia” da justiça angolana

joao-abel-torres

Recentemente, Luaty Beirão foi condenado a pena de prisão de cinco anos e seis meses pelo Tribunal de Luanda. Juntamente com Beirão foram condenados mais 16 ativistas por “atos preparatórios de rebelião e associação criminosa”. As penas variam entre dois e oito anos de prisão. A propósito da condenação dos ativistas, mais conhecidos insidiosamente como “revus”, tive a oportunidade de ler no jornal angolano Angonotícias alguns curiosos comentários, diria que mais próprios de espíritos encalhados algures no apogeu da Inquisição e do seu Tribunal do Santo Ofício. Acompanhem-me, por favor, na leitura das “pérolas” de um “profeta” que dá pelo nome de Eduardo Alberto: “Tomem muita atenção, angolanos. Angola é um país de maioria absoluta cristã e obrigatoriamente deve reger-se por leis e educação e comportamento cívico de padrão cristão. Logo tudo o que é rebelião e desobediência ao Estado e às suas leis é crime, e perante Deus é pecado porque é o mesmo pecado que cometeu Satanás quando queria substituir Deus. (Isaías 14:13,14) Foi punido com expulsão dos céus para o abismo (INFERNO). É a mesma coisa rebelar-se contra o governo ou qualquer autoridade instituída num país, que à partida é instituída por Deus. É um crime gravíssimo. Por isso merecem a condenação de que foram objeto, até com certa brandura. Para mim, é justíssima a condenação, porque antes estes desgraçados dos dezassete privados de liberdade do que quer que seja. As vossas teorias de defesa falaciosas no Direito não colhem. Lembrem–se que um Estado, Nação não se pode fazer de ensaio de teorias políticas nem de experiências de intentonas. Graças a Deus foram apanhados e abortados atempadamente nos seus intentos diabólicos de querer fazer de Angola uma Líbia, Tunísia, Egito ou Síria. Os senhores advogados não estariam agora aí a fazer macaquices de advogados (…).Todo o satanista que assim tentar será derrotado e vencido (…). BEM-AVENTURADA É A NAÇÃO CUJO DEUS É O SENHOR – SL.33:12”.

Repare-se que o texto é circular, começando coma referência,  supostamente de matriz cristã, seguida de uma citação de Isaías, fechando-se o círculo com outra citação bíblica. Basicamente, onde se lê “Satanás quando queria substituir Deus” deve ler-se Luaty Beirão “quando queria substituir” José Eduardo dos Santos.

Rebelar-se contra o Estado e as suas leis, isto é, contra Eduardo dos Santos e o seu livre-arbítrio, de acordo com a arrepiante homilia de Eduardo Alberto, é crime e pecado, conforme já avisava Isaías, que, como se sabe, terá sido a modos que discípulo de Eduardo dos Santos, o próprio Deus feito homem.

De resto, tal como em algumas das horríficas imagens medievais, aos “revus” está destinado o INFERNO e a condenação ao abismo… à falta de coisa pior, claro está.

Mesmo a condenação, neste julgamento inquisitorial-fantoche, segundo este “piedoso pregador”, até teve “certa brandura”, para não dizer infinita misericórdia, ficando  claro que a defesa do Direito e das liberdades, de acordo com este “católico praticante”, não passa de “macaquices de advogados” nessa “nação cujo Deus é o Senhor”, ou seja, dos Santos.

Trocando por miúdos, quem puser em causa a omnipotência, omnipresença e omnisciência de Eduardo dos Santos é inequivocamente satânico e não merece o ar que respira, nem muito menos pertencer à “BEM-AVENTURADA (…) NAÇÃO CUJO DEUS É O SENHOR”.

Mais adiante, porém, um leitor chamado Canadense, contrariamente ao beato Eduardo Alberto, comenta a notícia das condenações dos ativistas de uma forma realista e, vá, algo profética. Segundo Canadense, “o jes-mpla e o seu regime sanguinário está a cavar a sua própria sepultura…revus, roubos, incompetência, abuso de poder, ”angolagate”, enriquecimento ilícito, negligência na saúde,  lavagem de dinheiro, assassinatos de opositores, guerra, nepotismo, ditadura…nem quero imaginar o fim,vai ser pior que Mobutu”.

Contudo, se alguém imaginava que Eduardo Alberto era do piorio a destilar ódios de estimação, debaixo das vestes de homem de Deus, desengane-se. Um outro comentador não menos insuspeito, com o curioso e irónico nome de Lições de Cidadania e Patriotismo, vai muito mais longe na sede de carnificina:  “É a mão dura e pesada da justiça a funcionar num estado democrático a fazer-se sentir aos rebeldes infractores e incumpridores da lei. Estes senhores, para além de terem sido condenados a pena de prisão, deveriam era também ser espoliados de todos os seus bens, assim como os seus familiares mais próximos, bens esses que deveriam ser vendidos em hasta pública, com o valor dessa venda a reverter a favor do estado, para aprenderem de uma vez por todas que com as leis do estado não se brinca!!!”.

De todo o discurso vindicativo e de moço de estrebaria que se lê o que mais se destaca é, sem dúvida, a expressão “justiça a funcionar num estado democrático”, porventura tão respirável como os ares de Chernobyl, a grande democracia da Coreia do Norte ou o impagável Trump,inventor da nova muralha da China, e detentor de uma visão quase tão encantadoramente democrática quanto o seu penteado.

Finalmente, um Anónimo mais avisado adverte que “ Assim começa a crise política em Angola. De hoje até ao dia em que a corda rebentar. De que lado… só Deus sabe. Povo contra a Ditadura (juventude contra os velhos sem juízo)”. Com juízo, digo eu, ajuiza o Anónimo.

A propósito da sentença, o próprio Luaty Beirão pronunciou-se nos seguintes termos: “Sinceramente, eu esperava um pouco de bom senso por parte de quem está lá em cima para tirar essa temperatura ao descontentamento social, porque depois pode transbordar de uma maneira desagradável para toda a gente. Mas há coisas a mudar”.

Um exemplo destes sinais de mudança é a nota pastoral divulgada pela Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST) no início do mês, em que os bispos condenaram a má gestão do erário e a corrupção generalizada no país. Segundo Luaty, “É praticamente inédito. Foram mesmo termos duros – os termos que tinham de ser, porque é o que é – mas é inédito a Igreja pronunciar-se dessa forma”, sublinhou, acrescentando: “Estou confiante de que daqui para a frente não há volta a dar. Não há retrocesso”.

Acompanho-o nessa esperança, mas temo que a mudança não seja tão rápida e efetiva quanto se deseja e, pior ainda, receio que a queda do regime ditatorial “Santista” tenha um custo muito elevado em violência e derramamento de sangue entre irmãos, como é frequente ocorrer quando caem as ditaduras e os seus protagonistas, recordando, a título de exemplo, o fim, brutal, mas inevitável, de ditadores como Muammar al-Gaddafi ou Nicolae Ceaușescu.