Ainda nem o mundo tinha descansado da notícia de que a romancista norte-americana Harper Lee, autora do inesquecível “Não Matem a Cotovia” (To Kill a Mockingbird) tinha falecido, e eis que nova perda irreparável se faz sentir no panorama cultural e literário internacional. O escritor italiano Umberto Eco, um dos maiores vultos da Cultura ocidental de que a nossa civilização podia actualmente orgulhar-se, faleceu aos 84 anos.
O nome que celebrizou este académico com um percurso extremamente sólido no meio universitário foi um romance, que invocava os cânones da nossa civilização europeia de matriz judaico-cristã de modo incomparável: ‘O Nome da Rosa’, um exercício extraordinário e simultâneo do maior talento de construção de tramas detetivescas na senda de um Arthur Conan Doyle, entrecruzado com um esclarecido retrato da Europa medieval sob o domínio da Santa Inquisição, numa época em que os mosteiros e abadias eram repositórios de um saber herdado dos antigos filósofos gregos e não só, mas no qual esse saber só estava adstrito ao conhecimento de uns, poucos, escolhidos, e em que o mais importante era salvaguardar a todo o custo a doutrina cristã das “heresias”.
Quem leu este livro, e já agora, os outros inesquecíveis que Eco nos legou, sabe até que ponto eram extraordinários, profundíssimos, povoados de inúmeras referências culturais que não passariam pela cabeça nem sequer de muitos filósofos e historiadores esclarecidos. Umberto Eco era uma pessoa de uma sabedoria incomparavelmente enciclopédica, e escrevia como se se dirigisse a um púbico tão culto como ele, não fazendo muitas concessões ao leitor. Ler os seus livros é frequentemente desafiante. Em ‘O Nome da Rosa’, por exemplo, optou por deixar numerosas referências em latim no orignal sem tradução, o que obriga o leitor interessado a um trabalho de pesquisa para conseguir traduzi-las e não só isso, mas contextualizá-las. Demorei anos só para perceber o que significava verdadeiramente a última frase do livro ‘O Nome da Rosa’, escrita em latim. É que só se compreende verdadeiramente o contexto se soubermos que foi extraída dos escritos de um certo monge medieval, e proferida com um determinado sentido… E quando li ‘O Nome da Rosa’ ainda não haviam as possibilidades de pesquisa que nos proporciona a World Wide Web. O que é certo é que este, como outros livros de cunho filosófico e cultural absolutamente simbólico, como ‘O Pêndulo de Foucault’, ‘A Ilha do Dia Antes’, ‘Baudolino’ ou ‘O Cemitério de Praga’ só se conseguem compreender verdadeiramente quando verificamos de modo inextricável estão entretecidos na própria tessitura da cultura europeia religiosa e secular, no âmbito de uma ansiosa busca pelo conhecimento que oscila entre o científico e o metafísico. Em cada livro, o leitor, confrontando-se com referências culturais que nunca dantes havia verdadeiramente trilhado, é impelido em seguir, momentaneamente, por caminhos secundários para aprofundar o seu conhecimento dessas áreas acessórias, mas necessárias á compreensão do todo que nos quer transmitir o autor. Autor que se nos dirige como se soubéssemos tanto como ele! Para muitos apaixonados pela arte de bem se escrever (e ler) romances de cunho histórico e filosófico, Umberto Eco foi uma luminária que brilhou bem alto.
Durante muitos anos professor de semiótica na Universidade de Bolonha, presidia actualmente à Escola Superior do Centro de Estudos Humanísticos daquele estabelecimento de ensino superior. O filósofo e semiólogo italiano, especialista em símbolos, era ainda um exímio linguista. Demonstrou-o, aliás, no seu livro ‘À Procura da Língua Perfeita’.
Apesar de dono de uma cultura profundíssima, e especialista no período medieval, Umberto Eco era um observador atento da sociedade moderna e contemporânea e da sua simbologia, expressa não só através das artes plásticas – foi seminal o seu livro ‘A Obra Aberta’, mas também da banda desenhada e das histórias infantis, como demonstrou em ‘A Misteriosa Chama da Rainha Loana’ ou em ‘Diário Mínimo’, nos quais aborda personagens do imaginário infantil como o rato Mickey, a Clarabela ou outras personagens do panteão de Walt Disney do mesmo modo profundo e descontraído como abordava temas da chamada “alta cultura”. Tudo servia a Umberto Eco, da mais consagrada cultura livresca à arte ou comunicação ‘pops’, para reflectir sobre a sociedade e a nossa própria natureza de seres humanos, sobretudo na era da comunicação desenfreada e frequentemente desregulada.
Com comentários que entravam por vezes na esfera da política, o que mais lhe interessava era, sem dúvida, a consciencialização do homem contemporâneo. Nesse sentido, foi próximo de alguém que partilhava as mesmas preocupações: José Saramago.
O seu último livro, ‘Número Zero’, é uma crítica velada ao maquiavelismo do jornalismo hodierno, e à horrenda caricatura em que tornou – e ao mesmo tempo uma reflexão do seu incomparável e necessário papel em democracia.
Consciente de que vivia numa sociedade doente e confrontada por inúmeras dúvidas existenciais, Eco partiu, ele próprio, aparentemente vítima de uma doença que o corroía já há anos, a doença da ‘moda’, aquela de que quase todos morrem hoje em dia, o cancro. Também ela, um fenómeno de massas, ao qual a sua individualidade resistiu mas acabou por sucumbir.
A sua ausência será profundamente sentida. Que descanse em paz um dos poucos filósofos e comentadores que soube de forma exímia remeter o leitor às fundações da cultura do Ocidente, consciencializá-lo dos novos desafios da sociedade e ao mesmo tempo despertá-lo para a necessidade de uma nova forma de viver, mais baseada no saber e menos no possuir. Bem haja.