Missas do Parto escapam à crise e continuam a atrair milhares às igrejas

Bem no coração da cidade, o adro da Sé encheu-se de alegria, na preparação da Festa. (Foto Rui Marote)
Bem no coração da cidade, o adro da Sé encheu-se de alegria, na preparação da Festa. (Foto Rui Marote)

Madrugada adiantada, com a aurora quase a saltar por detrás da montanha, eis que o povo se levanta para o adorar o Menino e sua Mãe. Seguem em romaria, ao chamamento do búzio, do fogo de estalo e do sino, até à igreja toda iluminada. À oração, aliam-se os cânticos e a esperança na proteção da Mãe do céu:

“Virgem do Parto, ó Maria, Senhora da Conceição.

Dai-nos as Festas felizes, a Paz e a Salvação”.

A toada é conhecida de todos. Aguarda-se o final da missa para a prece mais sentida do momento. O cântico ecoa mais alto à saída do templo e toca mais fundo na alma dos fiéis. Neste momento, dá-se largas à alegria acompanhada pelo som do rajão, do acordeão, dos ferrinhos e do brinquinho.

Já no adro, partilham-se licores e cacau quente, broas e bolo de mel. Na casa de chá da paróquia, há sandes de carne vinho e alhos. O Natal é a Festa dos cheiros, a tangerina e a junquilhos.

Repetem este ritual durante nove dias, até à véspera de Natal, em ambiente de Festa onde a tradição se mistura com a devoção. É único em todo o país. Ninguém prepara a chegada do Menino da maneira como os madeirenses o fazem. À maneira de quem, durante séculos, teve na Fé o único alento para sobreviver entre montanhas agrestes e um mar demasiado longo para embarcar sonhos.

São as Missas do Parto, momentos únicos de expressão popular em que o profano e o divino, ao mesmo tempo que consolidam uma herança de séculos, também se reinventam todos os anos ao fluir da genuinidade e engenho de cada Tempo. Foram sempre muito concorridas, conseguindo escapar ao degaste da religião e à crise de valores que marcam a atualidade. Milhares de fiéis continuam a aguardar as novenas para cumprir a tradição.

Por estes dias, em todas as paróquias da Região, as portas das igrejas abrem cedo para acolher os devotos, velhos e novos, nem que por uma vez no ano, unidos na Vontade da partilha. Uns vão adorar o Menino e Sua Mãe, outros aproveitam para fazer a Festa. Cada qual com a sua motivação, todos contribuem para o renascer da tradição e a afirmação de um património muito próprio: aquele que nasce da alma de um ilhéu.

Animação suspensa

Há, porém, quem não concorde com o “arraial” associado à solenidade da eucaristia. Pede-se contenção, mais devoção e maior atenção aos que padecem dos males da sociedade. O exagero da animação, argumentam, ofusca a verdadeira mensagem do nascimento de Jesus: o estar presente para o Outro, sobretudo os mais vulneráveis. Criticam a alienação dos sentimentos e o vazio destes momentos vocacionados mais para os “comes e bebes” do que para a reflexão e misericórdia.

Poucos o sabem, mas as manifestações profanas associadas às Missas do Parto chegaram a estar proibidas nas igrejas madeirenses, durante algum tempo, no século XIX. Alertava-se para comportamentos desadequados nos adros dos templos em nome da Festa.

No entanto, a Igreja é o Povo e dele ela renasce, não podendo nunca esquecer que a sua mensagem se constrói na alegria da partilha.