A rejeição

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Entre   indiferença  e  rejeição  há  uma  fronteira  de  inconsciência  que perturba  os mais  sensíveis  e  atentos,  ainda  que  a experiência  do  mundo,  em todos os  tempos,  não alimente ilusões  acerca   das  lutas  pela vida.  O jogo da vida  não  apresenta  facilidades  e o que cada um  despende  em  trabalho  e  persistência  para ultrapassar  barreiras,  nem sempre  atinge o êxito  ou é  recompensado  na justa  medida.  Às  vezes nem o talento consegue  demover os  néscios ou  acordar  os  apáticos,  pelo que  se somam as  histórias trágicas  de tantos que as  sociedades ignoram,  desprezam  ou  condenam   à obscuridade e ao abandono.

Trago ainda da minha última viagem  algumas memórias menos convencionais  que se relacionam  com  o  estado  de  incúria   em que  vivem  pelas ruas, os desenraizados, gente errante,  que, vivendo na margem , permanece na espera de encontrar  um caminho de dignidade. Em tempo de guerra  é clara a causa desta errância.  Mas em  tempo de paz,  outras  ameaças  pesam sobre indivíduos  que, por talento próprio,  singram caminhos invulgares  e procuram afirmar-se  condignamente  pelo que sentem e pelo que pensam fora dos  cenários canónicos. Estão neste caso  os criativos.

Uma figura melancólica mas genial  persegue-me  desde que  a  sua história me foi dada a conhecer. E não trago notícias originais  sobre  a  sua vida, personalidade e obra  que actualmente  se tornaram  indispensáveis  referências.  Recorde-se o seu trabalho:  A Casa Amarela, o Café à Noite, a Ponte de Trinquetaille, a igreja de Notre- Dame- de-Auvers e as quase duzentas  obras  pouco divulgadas, que incluem  aguarelas e  desenhos.

Por  isso fui percorrer  as  ruas  de  Auvers, à beira do rio Oise, afluente do Sena, por onde o seu vulto esguio e faminto, perscrutador da luz e das sombras, caminhou  e  se  maravilhou  com o sossego  dos  campos  e  das  quintas,  que  ainda  hoje  se oferecem em  recato e encanto  a quem passa  por  ali.   Vincent Van Gogh  foi um estranho, um desenraizado que, por entre as vivendas tranquilas de Auvers-sur-Oise  circulou, solitário  mas determinado,  à  procura  dos  motivos  que o  seduziam  e  respondiam à  sua intensa paixão pela Natureza e a  vida:  os  camponeses, os torrões,  as  ervas, os  jardins, a extensão dourada dos trigais, até a modesta escada de madeira, que ainda hoje se mantém  ao cimo  da Rue de la  Sansonne. Senti que precisava de pisar as  ruas que ele pisou,  de olhar  os  campos e  as  casas  que  ele  olhou  e  foram  motivo  duma    obra  fora  do  tempo  e  do  entendimento  dos homens.  Subi  os dois lanços da escada  até ao segundo  andar da  Pensão Ravoux  em expectativa ansiosa. O minúsculo quarto onde expirou  é  uma  cela  sinistra,  testemunha fantasma  dum  cenário doloroso.

Daubigny, o pintor de Barbizon, viveu também   aqui,  no remanso dum jardim burguês. Possui um museu  e um  busto no cruzamento da rua que tem o seu nome com  as de Paris e Montcel,  mas é Van Gogh quem atrai  a Auvers-sur-Oise o sonho do viajante.

A memória deste  homem assumidamente trabalhador da Arte  e lúcido pensador,  a quem  foram  negados  carinho,  reconhecimento  e  valor, é hoje exaltada pela  História.  Os  seus quadros  que  em  vida  lhe  valeram  apenas  a  fome  e  o  desalento, valem  agora  o  preço  milionário  dos  homens  poderosos  que  os  cobiçam  e  adquirem.

É  elucidativo o que conta,  com  fina  ironia,  numa carta a Théo, o irmão dedicado e protector:

“Eis um bom exemplo da cortesia  do  público de Haia  para com os pintores:  um sujeito cuspiu o rapé para  cima do meu papel, provavelmente por uma janela qualquer; às  vezes, há aborrecimentos desta  ordem. Enfim, não vale a pena zangar-se a gente; estes indivíduos não  são maus, mas não percebem  nada  e  pensam  decerto  que  quem  desenha  a  traços  largos  não  há-de  passar  de  um  louco.”

Espantosa  é  esta confissão:

“ Estou  comovido, profundamente comovido com um belo gesto. Ora escuta. Eu  tinha dito ao  meu  modelo  que não  viesse  hoje  —  sem lhe explicar o porquê. A pobre mulher compareceu, apesar disso, e, como eu protestasse replicou: Não venho para a sessão,  venho ver  se  o  senhor tem alguma coisa que coma. Trazia uma porção de feijão  verde e  batatas. Mesmo assim há coisas admiráveis na vida.”

As águas  do Oise  correm  serenas. As  vivendas dormem  uma  sesta  tranquila  ao  intenso  calor  de  Julho. De  vez em quando  surgem  nos  pavimentos  pequenas  placas  de  cobre onde alguém gravou o nome de Vincent.  Desvio-me  para que os  meus  pés não  profanem  a  inscrição  votiva.  Levei   o meu aceno aos  trigais, onde um bando de pombos repentinamente se ergueu  em  sinal  de  paz e desagravo  ao  antigo e agoirento  adejar dos corvos  e  deixei um pequeno recolhimento  sobre o seu túmulo e o de  Théo, os únicos cobertos de hera  no cemitério. Sentei-me à sombra duma árvore junto do   vulto  a corpo inteiro, como Zadkine o imaginou, de cavalete às costas, submisso a  um  destino  de caminheiro inquieto  mas  resoluto. Regresso com uma missão cumprida.

Relembro  o  que  disse  o  pintor  numa época crucial da sua vida: “Se é certo que às  vezes tenho aborrecimentos  de  que  estou  farto até  aos  olhos, não  é  menos verdadeiro  que  subsistem  em  mim harmonia  e  música puras  e  calmas. Descubro  temas  de  pintura ou  de  desenho  no  casebre  mais  pobre,  no  canto  mais  imundo. (…)”

Voltarei um dia a Auvers-Sur-Oise para  colher mais demoradamente  essa  harmonia e esquecer como foi,  no  seu  tempo, miseravelmente rejeitado.

A história de Van Gogh é o protótipo de outras tantas, que, em  qualquer parte do mundo  vão, ainda  hoje, acontecendo .

Também por isso não  a esqueço.  Também por isso  me  rebelo.

 

Irene Lucília Andrade

 

Setembro, de 2015