Dançando com a Diferença prepara espectáculo inspirado em Miguel Torga

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O grupo ‘Dançando com a Diferença’ está já em ensaios para apresentar, em Janeiro do próximo ano, um novo espectáculo que será inspirado nos contos de Miguel Torga intitulados ‘Bichos’. Esta será a mais dispendiosa produção da companhia até à data, representando um grande investimento por parte da mesma, e contará, inclusive, com vistosos adereços produzidos na Inglaterra e que representam uma inovação visual significativa em relação ao que os espectadores se habituaram a ver.

O conto de Vicente, o corvo que deixou certo dia a arca de Noé e se recusou a voltar, é um dos que mais serve de inspiração ao coreógrafo Rui Lopes Graça, que se encontra no Funchal a trabalhar com os integrantes deste grupo de dança inclusiva. Fomos encontrá-lo em plena preparação da coreografia que, de sua única e exclusiva autoria, será intepretada pela companhia dirigida por Henrique Amoedo, e que se tem distinguido em palcos madeirenses, nacionais e internacionais.

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O coreógrafo português Rui Lopes Graça está a preparar um trabalho baseado nos contos ‘Bichos’, de Miguel Torga.

Rui Lopes Graça é um conhecido coreógrafo português, que tem colaborado extensivamente com a Companhia Nacional de Bailado (CNB). Também já o fez com o Ballet Gulbenkian, Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, Ballet du Rhin (França), Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique, Companhia de Dança Contemporânea de Angola e a sua própria, Companhia Rui Lopes Graça, entre outras. Coordenador de projectos especiais da CNB, lecciona também na Escola Superior de Dança e na Universidade de Stavanger, na Noruega. Conquistou o Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores da melhor coreografia de 2012, com ‘Pedra Preciosa’, para a CNB, em parceria com André E. Teodósio.

Ao Funchal Notícias, Rui Lopes Graça explicou de que forma está a desenvolver a coreografia inspirada em ‘Bichos’.

“Miguel Torga é um escritor por quem nutro especial admiração, pela natureza da vida da própria pessoa, pela frontalidade, pela relação com a terra, com a posição acerca da dignidade da vida… E depois, porque ‘Os Bichos’ aparentam ser bichos, mas por detrás da sua imagem de bichos, existem características humanas. E isso é um assunto que me interessa muito. É uma coisa de todas as épocas: nós, seres humanos, tendemos a criar um juízo de valor em relação ao outro por aquilo que ele aparenta, pela sua forma, por aquilo que ele diz. Digamos que as pessoas têm uma forma de estar na vida que pode servir para esconder uma outra coisa que existe dentro de si. Existe uma natureza mais humana, mais profunda, sob aquilo que a pessoa aparenta ser. Achei que havia uma relação muito profunda entre isso e o trabalho que é desenvolvido por esta companhia, Dançando com a Diferença”, explicou.

O nosso interlocutor diz que procurou, então, neste trabalho de dança, focar o “não visível”, o que está por baixo da aparência, que provoca nas pessoas um juízo de valor e uma tomada de posição, que na maior parte das vezes está errada.

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Embora inspirada em certos contos de Miguel Torga, esta coreografia que Rui Graça está a desenvolver não é, de modo nenhum, uma peça narrativa. “Não pretendo recriar cada um dos contos… Tento, a partir deste conto em especial – Vicente – criar um novo universo, sendo porém que se podem encontrar características que estão no conto”, referiu-nos.

Para o coreógrafo, o corvo Vicente representa a não resignação à vontade alheia, encarnando uma vontade de liberdade extrema. “Esta não aceitação de um padrão é a epítome da libertação humana”. No conto, a personagem Vicente parte da arca de Noé em direcção à imensidão do mar, recusando-se a aceitar a divisão entre os que se iam salvar do Dilúvio e aqueles que pereceriam, algo que, a seus olhos, parecia uma arbitrariedade. Vicente encontra terra e pousa num cume, mas as águas vão sempre subindo. A morte pode ser o preço da liberdade, mas o Criador acaba por deter-se, pois, como nos conta o escritor, “nada podia contra aquela inabalável vontade de ser livre”. Por isso, para salvar a sua própria obra, fecha as comportas do céu.

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Para Rui Graça, este episódio reveste-se de forte simbolismo: “Muitas vezes nós não nos deixamos ser livres, porque temos medo. Mas a vitória, a liberdade, a felicidade, advém precisamente de conquistarmos esse medo”.

Desta primeira vez que está a colaborar com o ‘Dançando com a Diferença’, o coreógrafo está a reter impressões muito positivas: “A experiência está a ser extraordinária. Estou habituado a trabalhar em companhias de repertório, companhias profissionais. E isso cria um certo tipo de código de dança, de postura… O tempo para se saborear o que se está a fazer é um tempo completamente diferente. Aqui, como não existe esse tipo de pressão, e as pessoas que integram o elenco não são bailarinos de carreira ao mais alto nível, com toda a competitividade inerente, são antes pessoas que querem dançar, que querem existir através da dança, mas não têm o mesmo tipo de postura competitiva e quase desleal que muitas vezes acontece no mundo profissional, é tudo muito mais fácil… Existe a pureza da vontade de dançar”.

Tudo isto se traduz numa “outra comunhão”, que é uma experiência muito especial.

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“Todo o trabalho que foi feito anteriormente pelo Henrique [Amoedo] é notável, que merece um destaque infinito. A consequência destes anos todos de trabalho é que tem aqui um grupo de pessoas que têm um código de profissional, do que é estar em palco, de respeito mútuo, um sentimento de grupo… Mas têm outras potencialidades expressivas, existem outros aspectos a explorar que geralmente não se exploram noutro tipo de companhias. É fascinante”.

O projecto não é, no entanto, isento de dificuldades, mas as mesmas dizem sobretudo respeito ao próprio coreógrafo, habituado a trabalhar de outras formas. É ele que tem de despir-se dos códigos a que está habituado, e adaptar-se ao potencial dos bailarinos que tem à disposição, diz o próprio Rui Graça. “As pessoas têm muito para dar. Mas eu é que tenho de descobrir o que é”, salienta.

Rui Lopes Graça estará na Madeira a ensaiar este espectáculo até 2 de Agosto. Prevê-se, depois, a possibilidade do seu retorno antes do final do ano, mas de qualquer modo o ‘Dançando com a Diferença’ já deverá ficar de plena posse das ferramentas para manter o espectáculo preparado até ao advento da sua estreia.

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Conforme nos explicou Henrique Amoedo, é intenção da ‘Dançando com a Diferença’ levar este espectáculo ao continente, mas as negociações ainda não estão fechadas, pelo que não é possível avançar para já com mais pormenores. É certo, no entanto, que esta “é uma obra para circulação, para dançar aqui e em outros lugares”, sublinha Amoedo, que espera que este trabalho, através da circulação por espaços nacionais e internacionais, permita uma revitalização do equilíbrio financeiro do grupo, que já atravessou – e ainda atravessa – momentos difíceis. É sempre complicado explicar aos potenciais patrocinadores que o que se pretende não são insignificantes apoios para caridade, mas patrocínios dignos e reais, que representam, para os empresários dispostos a investir, contrapartidas importantes de associação a um projecto cultural relevante e significativo.

“Não há, na Madeira e de uma forma geral, o hábito do apoio à Cultura por parte dos privados. Temos de fazer com que as pessoas entendam… que não posso deslocar onze pessoas para o Porto com 100, 150 euros, que são as verbas que concedem para a caridade. E por vezes, pensam que o que pretendemos é um apoio caritativo. Ora, estamos a falar de coisas totalmente diferentes. Os patrocinadores têm de perceber que há contrapartidas, que o ‘Dançando com a Diferença’ tem uma visibilidade enorme que pode reverter, de forma positiva, para quem apoia. A Lei do Mecenato funciona, também… Enfim, há vários aspectos que as pessoas não entendem bem… É um trabalho que é sempre preciso ir fazendo”, insiste o mentor deste projecto de dança inclusiva.

Henrique Amoedo, o mentor da companhia, faz um apelo aos patrocinadores
Henrique Amoedo, o mentor da companhia, faz um apelo aos patrocinadores

Henrique Amoedo desvenda que o convite a Rui Lopes Graça adveio do facto de a ‘Dançando com a Diferença’ já ter actuado algumas vezes no Teatro Camões, em Lisboa, a convite da companhia residente, a CNB.

“Foi a partir daí que conhecemos mais de perto o trabalho dele, e fomos mantendo contacto desde então. Foi agora que surgiu a possibilidade da sua colaboração”, explicou.

Referindo-se às máscaras que serão usadas neste espectáculo, Amoedo assume-as como um elemento inovador: “É uma coisa que a Dançando com a Diferença nunca usou. São máscaras muito bonitas, muito apelativas. E isso é importante: unir ao trabalho coreográfico, de dança, outras coisas, provenientes das artes plásticas ou da música”. Diversificando, portanto, as formas de apresentação em palco, “tentando inovar e evitar a repetição”.

Na Madeira, este trabalho deverá, em princípio, estrear ou no Centro das Artes Casa das Mudas, ou no Teatro Municipal.

As escolhas musicais de Rui Graça incidirão sobre um leque muito diversificado de músicas, disse-nos ainda Henrique Amoedo, dando a entender que cada ‘bicho’ que surgirá neste espectáculo será de certa forma ‘identificado’ como sendo proveniente de diversas partes do mundo.

Nova apresentação no Porto

Entretanto, e conforme desvendou Henrique Amoedo ao Funchal Notícias, o grupo ‘Dançando com a Diferença’ tem já prevista uma apresentação no Porto, em Setembro deste ano, participando num evento de artes na comunidade, o festival ‘Mexe’, no Teatro Carlos Alberto.

Lá será interpretada a coreografia ‘Dez mil seres’, da autoria de Clara Andermatt, que o grupo já anteriormente estreou e apresentou noutros lugares, inclusive no Brasil. Nesta produção entram oito pessoas em cena. O ‘Dançando com a Diferença’ é a companhia convidada para abrir este evento.