O desacordo ortográfico

Carlos Fino

Uma vez, Millôr Fernandes, génio carioca recentemente falecido, escreveu o seguinte do alto da sua acutilante lusofonia: “Quando os filólogos descobriram a língua ela já estava totalmente pronta. Só tiveram que estabelecer regras bem rígidas pra impedir o povo de usá-la erradamente”. Ele tinha razão, evidentemente. Ao que os filólogos retorquiram, e agora já sou eu a inventar: “A língua é como a liberdade. Para que não fosse necessária a existência de leis e de polícias, seria obrigatório sermos todos santos”.

Como veem, mesmo sem o acento circunflexo, sou millôriano. Lusófono, de nascença, e millôriano desde criança, e isso porque existiam exemplares já fora de prazo da revista O Cruzeiro nas barbearias e nos consultórios médicos desta mui cosmopolita cidade do Funchal, há um ror de anos (a revista deixou de se publicar em 1975), onde escrevia e desenhava um carioca desconcertante, que assinava Millôr. Com ele, aprendi que nem sempre as coisas são o que parecem e que há sempre um lado diferente a explorar. Por exemplo, é dele também a afirmação de que “a Justiça farda mas não talha”, cuja semelhança com inúmeras situações reais está longe de ser mera coincidência.

Portanto, é com bonomia que tenho aprendido a conviver com o (des)Acordo Ortográfico, em relação ao qual a esmagadora maioria dos lusófonos está nem aí (recuperando uma expressão usada recentemente pelo nosso inefável Paulinho das Feiras, informando não ser candidato a Belém). Mas que tem suscitado sonora indignação a um grupo módico de pessoas, que acreditam na maldade intrínseca do (des)Acordo e, reciprocamente, na bondade de cada colégio nacional de filólogos obrigar o seu povo a escrever à sua maneira.

Também desde criança me habituei a sorrir com a alegação segundo a qual os ingleses e os americanos (do norte, passando por cima do México) eram dois povos irmãos separados por uma língua comum. Muito mais tarde, percebi que, afinal, as diferenças entre as duas mais importantes variantes escritas, mas sobretudo faladas, da língua portuguesa eram incomparavelmente maiores, apesar da idêntica retórica dos povos irmãos e de um período de dupla cidadania, funestamente interrompido pela nossa adesão a CEE, nos anos oitenta.

Mas o maior problema é que, ao contrário do que se pode inferir apressadamente da observação de Millôr Fernandes, uma língua, estando pronta antes da chegada dos filólogos, nunca está pronta. Não sei se uma língua é uma pátria, como afirmava Pessoa, no mesmo texto onde também dizia que “a orthographia também é gente”, mas sei que está viva. Move-se, isto é, anda sempre à frente dos filólogos, que mais parecem, com a lógica dos Acordos, bombeiros a apagar incêndios que nunca extinguirão completamente antes de deflagrar o próximo. Mas, quanto mais longe estiverem os filólogos da respiração da língua, pior. Ou nos pomos de acordo, ou o português do hemisfério sul, qualquer dia, reclamará a definitiva carta de alforria. E nós ficaremos neste jardim da Europa à beira-mar plantado a discutir filologia.