Da pobreza

icon-graça-alves

Quando dou comida aos pobres chamam-me santo. Quando  pergunto por que eles são pobres chamam-me comunista.
(Dom Hélder Câmara)

Sei de pobres, sim. Sei de pobres tão pobres que não expõem a sua pobreza. Sei de pobres sem nada. Sei de pobres com tudo.

Sei de casas onde a morte se demora e os passos se gastam à procura de trabalho. Sei de lugares que já foram lares e que, agora, são o que é possível, enquanto é possível. Sei de vidas que se desfizeram ao virar da esquina, no lugar exato onde a esperança desespera de tanto esperar. Sei de casas vazias de tão vazias.

Sei de mãos. Sei de silêncios. Sei de ausências. Sei de lágrimas que o peito engole, porque nem sempre o choro é chuva para o mundo. Sei de portas fechadas onde se esconde a solidão. Sei de vazios tão grandes que nem todas as palavras do mundo caberiam lá dentro.

Podia continuar a contar o que sei e a inventar o que me falta e que os meus olhos me mostram, todos os dias: gente no limiar do desespero, sem entender de que modo a vida se há de fazer com o que já não há.

Onde fica o futuro, num mundo assim? Onde ficamos nós, que [ainda] temos trabalho e casa e um beijo de boa noite, ao cair do dia? Onde ficam as palavras que esvaziamos por falta de sentidos? O que se faz às lágrimas que o coração absorveu mas que não serviram para regar o chão de ninguém?

Mesmo à beirinha de mim, há situações que são grito. Calados, mas gritos. Nas casas ao lado da minha, vivem ausências angustiadamente fechadas: de pão, de trabalho, de saúde, de alegria.

Dou por mim a passear a memória, atrás de situações de antes. Vejo pobres mais pobres, sim. Vejo a luta por dias mais claros e ouço a voz do meu pai:

– este mês, não pode ser.

Vejo-me a dizer,

– não faz mal,

porque não valia a pena chorar, desejar a lua, querer colecionar as estrelas…

Vejo-me a cantar  eu sou pobre, pobre, pobre, de maré, maré, maré… e a rir como se essa pobreza fosse uma cantiga e eu eternamente menina e o mundo eternamente uma roda… Vejo-me a pensar,

quando eu for grande…

Dou por mim a perceber o quanto o mundo mudou. Dou por mim a perceber que não consegui mudar o mundo. Dou por mim a perceber que a humanidade não aprendeu nada: que há mãos que continuam a estender-se

– por amor de Deus,

por amor dos seus,

e que, hoje, não pedem apenas pão…

O que é que [não ] aconteceu, afinal, no coração do homem? Ainda iremos a tempo de salvar a nossa humanidade? Estender o coração é a única forma de responder ao estender da mão. Por muito que me esforce, não consigo pensar noutra.

Sei de pobres, sim. Sei da fome que o desemprego escreveu a sangue atrás de muitas paredes. Sei de encontros marcados com a morte porque já nada parece ter solução. Sei. E isso me basta para não estar feliz.

Há mãos que pedem, que pedem, que pedem.

 E as nossas mãos? Dão?