Patético

O programa Mais Habitação que o Governo da República recentemente colocou em discussão pública suscitou, como é sabido, uma disparidade de críticas e de comentários, quer à direita quer à esquerda.  O único consenso obtido foi porventura o reconhecimento de que há no país (em particular nas grandes cidades, mas não só) um problema em matéria de habitação, sendo que as necessidades abundam e as soluções tardam ou não existem.

Quase meio século decorrido desde o 25 de Abril, o 1º direito, o direito constitucional à habitação, continua por assegurar em Portugal a milhares de cidadãos e de famílias. O que constitui desde logo uma afronta a um dos desígnios do próprio 25 de Abril, o D de Desenvolvimento.

Que o problema não se resolverá a breve trecho é facilmente perceptível quando, face às carências existentes, se conhecem as verbas que no Continente e na Madeira vão ser alocadas nos próximos anos à habitação no âmbito do chamado PPR. Sendo que, como se sabe, para além da falta de casas, há também o custo das mesmas, quer em matéria de aquisição quer de arrendamento.

Das críticas formuladas ao programa Mais Habitação a mais patética foi, sem dúvida, a formulada por Luís Montenegro, o líder nacional do PSD, que considerou que o mesmo «tem uma faceta de “comunismo”»! Em causa, uma das medidas previstas no aludido programa, a do recurso por parte do Estado ao arrendamento coercivo de habitação devoluta. Uma reacção que os seus correligionários repetiram por todo o lado, acusando António Costa e o Governo PS de ataque à propriedade privada.

Não menos patética foi a postura adoptada regionalmente pelo PSD e respectivo governo. Um governo que ao longo de mais de quatro décadas fartou-se de proceder a expropriações (algumas das quais de duvidoso interesse público), na sua ânsia febril de obrar a todo o custo e simultaneamente fez arrastar no tempo o pagamento dessas mesmas expropriações com evidente prejuízo para os seus proprietários.

A propósito, vale a pena recomendar a leitura da crónica que Ana Sá Lopes, redactora principal, publicou domingo último no jornal “Público” (“«Os comunistas» levaram o campo da minha infância. E depois?”), no qual recorda a história de um terreno pertencente a um seu avô que a autarquia de Viana do Castelo expropriou para construir um pavilhão gimnodesportivo, escrevendo: “Quando Carlos Moedas ( presidente da Câmara Municipal de Lisboa) vem este sábado fazer um manifesto em defesa da propriedade privada, dá-me vontade de rir, porque me lembro do «meu» campo e de todos os campos por esse país fora que foram expropriados em nome de bens maiores como auto-estradas, estradas, centros de saúde, hospitais, escolas, pavilhões gimnodesportivos. A habitação acessível também deveria estar contemplada no «interesse público» subjacente ao direito à expropriação”. E a jornalista que encoraja António Costa – “cace o devoluto, senhor primeiro-ministro. As pessoas que não têm onde morar porque não conseguem pagar as rendas da Grande Lisboa vão ficar satisfeitas com o Governo”-, remata: “Se a expropriação é aceite para fazer estradas e pavilhões gimnodesportivos, porque não o é para criar habitação acessível? Quando me «tiraram» o campo da minha infância, ninguém teve dúvidas sobre a justiça social que estava subjacente à decisão. O problema é que, no ano de 2023, as duas palavrinhas são «comunistas»”.

O posicionamento do PSD em torno do programa Mais Habitação suscita uma outra leitura que em editorial intitulado “Na habitação o P deixou de ser SD”, o director do Público identifica: “O PSD nega qualquer função social à propriedade privada. A clarificação programática feita em plena Assembleia (..) comprova que o partido conhecido pela sua volatilidade ideológica está hoje num abraço com o ideário liberal. (…) a mudança que leva o PSD a admitir que os donos das casas, das empresas ou das florestas desempenham apenas funções privadas”. Daí que Manuel Carvalho conclua: “Não vem daí nenhum problema desde que fique assumido que o partido é hoje liberal-democrata e não social-democrata. Uma palavrinha muda tudo, até a história do partido”.

Como já se tinha visto noutras ocasiões, designadamente no incêndio em Lisboa que vitimou imigrantes a viver em condições deploráveis, o PSD está hoje em disputa eleitoral com o Chega. Na ânsia de estancar eleitorado que vai caindo nos braços da extrema-direita (como se depreende das mais recentes sondagens) julga que é repetindo a linguagem e o discurso daquela que se constitui em alternativa. Como na ocasião do incêndio na baixa lisboeta alertou o Presidente da República, a cópia é sempre pior do que o original. Ou seja, por esse caminho só se vai tornar mais dependente do pirómano Ventura. Simplesmente patético.

 

*   por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

Post-Scriptum:

  • Elogios: Em recente passagem pela Madeira, Álvaro Beleza e Miguel Sousa Tavares não resistiram a tecer loas à governação regional. Quer o presidente da Sedes quer o jornalista e escritor ficaram extasiados com o que viram. Beleza, que se reclama de militante do PS, repetiu o que nos governos de António Guterres era habitual ouvir dos ministros e secretários que aqui se deslocavam, ignorando por completo o outro lado, a realidade que não surge no postal ilustrado. Como disse e escrevi então: com amigos destes, o PS-M não precisa de inimigos. Quanto a Sousa Tavares, sucedeu um autêntico volte face: nos tempos do auto-intitulado “único importante” recusava cá vir, tendo agora se rendido ao postal. A “renovação” proclamada por Miguel Albuquerque difere assim tanto dos tempos da criatura? Ou trata-se tão somente de uma questão de coluna?
  • Estatísticas: Tal como o seu antecessor, Albuquerque convive mal com os indicadores que lhe são adversos. Que mostram o outro lado do tão proclamado desenvolvimento. E assim diz não acreditar nos números da pobreza, contrapondo com o emprego registado. Como se ter trabalho significasse que não se é pobre. Ou que os rendimentos dos pensionistas não têm nada que ver com uma governação de quatro décadas do seu partido.
  • “Pugresso”: De acordo com dados vindos a público, a Madeira é campeã da União Europeia em matéria de acidentes rodoviários e percentualmente tem uma realidade no domínio das altas problemáticas 10 vezes pior do que no Continente. É só desmancha-prazeres!