Língua-Sociedade-Cultura: lenços de mão para o nariz

 

Ir buscar o significado de palavras que, em princípio, ninguém procura no dicionário é um exercício linguístico extremamente enriquecedor e educativo. Está muito próximo daquele que algumas pessoas ainda praticam. É o de ler dicionários como se fossem romances. Eu, aos dicionários, leio-os, ou melhor, consulto-os, em função do que pretendo saber, para o que quero confirmar ou com a intenção de tirar dúvidas. Às vezes, é por simples curiosidade, apenas para ter a visão do mundo transmitida pelo dicionarista. Uma das minhas últimas consultas a dicionários foi assim, por pura curiosidade, após ouvir o Professor Doutor Hélder Spínola, há dias, no programa de serviço público e de divulgação cultural HORA DEZ de Marta Cília, na ANTENA 1-Madeira. Apanhei a conversa radiofónica a meio. Ouvi o meu Colega com atenção, enquanto dava a conhecer as actividades que tem desenvolvido na Universidade da Madeira, a fim de mudar comportamentos. Ensinar é levar a pensar, a tomar decisões, a mudar. Aprender é pensar, decidir e mudar. O ambientalista Hélder Spínola tem ensinado e agido na defesa do ambiente e da sustentabilidade (palavra que mereceria um estudo linguístico aprofundado, se ainda não o tem), com gestos concretos, no espaço universitário onde trabalha. Claramente, passou das palavras aos actos. Durante a conversa, eu fiquei a pensar nas palavras “lenço” e “assoar”, tomando a decisão de consultar dicionários.

Uma das propostas que Hélder Spínola fez, e à qual aderi há alguns anos, foi a de mudar individualmente alguns comportamentos sociais. Com a adesão a um dos programas ambientalistas, recebi presentes: saco de pano, cantil, um copo de vidro e outro dobrável, cinzeiro portátil e lenços. Os sacos de pano, já os usava. Aliás, na carteira (ou bolsa, como ouço dizer), fui tendo um saco reutilizável que serve para qualquer compra quotidiana. O cantil para beber água da torneira substituiu, no meu dia-a-dia, as garrafas de água compradas, sobretudo as mais pequenas. O mesmo copo (ou uma caneca) é usado na máquina do café (chá/ leite/ chocolate), no edifício da Penteada, dispensando os copos de papel, que, após o uso, são lixo amontoado, sem reciclagem possível. Ofereci o pequeno cinzeiro portátil em formato porta-chaves a um fumador. Com isto tudo, a minha maior mudança foi a de substituir os lenços de papel, que comprava regularmente, por lenços de pano. Passei a ter comigo uma carteirinha com dois lenços diferentes. O lenço das flores cor-de-rosa é para o nariz e o lenço das riscas é para secar as mãos, depois de as lavar. Para as mãos, o processo de mudança tem-me levado mais tempo a interiorizar. Sempre que me lembro (os comportamentos estão memorizados e são quase mecânicos, sendo difíceis de mudar), não uso os toalhetes de papel porque tenho comigo o lenço para as mãos (um real “lenço de mão”). Assim, progressivamente, no sentido de produzir menos lixo e de ser mais sustentável (o adjectivo da mesma família de “sustentabilidade”), deixei de comprar pacotes de lenços de papel para me assoar. No fundo, eu fico a ganhar e o ambiente também. Eliminei dos meus hábitos o plástico do pacote e o papel dos lenços. Julgo que, num ano, produzi muito menos lixo. Nestas mudanças individuais, acabei por diferenciar o “lenço das mãos” do “lenço do nariz”, embora a tradição linguística – cultural e social – relacione ambos, já que o “lenço das mãos” ou “lenço de mão” serve para limpar o nariz. Fui ao dicionário, ou melhor, aos dicionários procurar as definições de “assoar” e “lenço” para ter uma visão geral do que os dicionaristas registaram. Um dicionário é fruto de uma época e transporta consigo visões do mundo, da sociedade e da cultura. Optei por dois dicionários portugueses, com pouquíssimos anos de intervalo a nível de publicação, sendo um do início do século XXI (2001) e outro do fim do século XX (1998).

Na entrada do verbo “assoar”, no DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA da Academia das Ciências de Lisboa, publicado pela Verbo (ver 1.ª edição de 2001), lê-se:

“(Do lat. assonare ‘fazer soar’). Limpar o nariz fazendo com que o muco nasal seja expelido. A mãe assoou o narizito da filha com um lenço de papel. O João assoou-se ruidosamente. «aquelas carinhas de anjo que a mãe assoara e lavara» (AQUILINO, Volfrâmio, p. 374). «abria o seu enorme lenço escarlate para se assoar» (CAMILO, Anos de Prosa, p. 94). assoa-te a esse guardanapo, Fam. Expressão indicativa do juízo de valor, do ensinamento a retirar de uma má acção, de um lapso, intencional ou involuntário… não ser bom de assoar, Fam. ser de trato difícil. ser mau de assoar, Fam. o m. que não ser bom de assoar”.

A origem latina – “fazer soar” – é, deveras, relevante porque o gesto está relacionado com a audição, com o som que se ouve ao ser realizado, e a única informação do dicionário que se reporta ao ruído é a da abonação de Camilo Castelo Branco, reforçada no “ruidosamente”. Será, de algum modo, pleonástico porque a etimologia latina “fazer soar”, já implica ruído, uma vez que “soar” requer que se ouça. No Ocidente, social e culturalmente, não é de bom tom produzir ruído ao assoar-se. Ora, é quase contraditório. Nos exemplos dados, associados a “assoar”, contam-se duas referências a “lenço: “um lenço de papel” e “enorme lenço”, ou seja, o material (papel) e o tamanho (enorme), havendo também um pormenor ligado à cor que não será tão relevante, mesmo se o pode ser. Curiosa, curiosa, é a expressão idiomática “assoa-te a esse guardanapo”, uma vez que substitui “lenço” por “guardanapo”. Cultural e socialmente, o “guardanapo” é um pano ou um papel (o “lenço” também é um pano, na origem, e pode ser de papel) destinado a limpar a boca, os lábios, durante uma refeição, por exemplo, antes de beber. Ninguém limpa o nariz num guardanapo, mas, se não tiver “lenço”, o “guardanapo” poderá ser um substituto, embora nada recomendado pelas boas maneiras ocidentais. A expressão idiomática deixa perceber que a situação é invulgar. Onde se limpa a boca, ou melhor, os lábios, ninguém limpa o nariz… Que dirá o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa para “lenço”?

A entrada “lenço” desse Dicionário dá que pensar. Observe-se a definição:

“(Do lat. pop. lenteum, por linteum ‘pano de linho’). 1. Pequeno pedaço de tecido, modernamente também de papel, quadrangular, que serve para as pessoas se assoarem ou limparem o suor, as lágrimas… Estou constipadíssimo, tenho de ir comprar mais lenços. Acenar com um lenço. Enxugar as lágrimas com um lenço. + bordado, + de assoar, de mão, de algibeira. lenço de papel, o que é feito dessa substância que se deita fora após a utilização. 2. Acessório de vestuário que consiste num pedaço de tecido quadrangular, usado sobretudo pelas mulheres, que o colocam ao pescoço, pelos ombros ou a cobrir a cabeça. Resguardava o pescoço com um lenço, tinha de ter cuidado com a garganta. Na minha aldeia, as mulheres ainda usam lenço na cabeça. Atar. pôr o +. 3. Pop. Peritoneu. 4. Marc. Cada um dos lados de uma gaveta.”

O adjectivo “pequeno” – novamente o tamanho – contraria o exemplo retirado de Camilo, facultado em “assoar”. É confirmado o material “papel”, assim como “tecido”. A diferença entre os dois regista-se no advérbio de modo “modernamente”, quanto ao “papel”, manifestando uma preferência deste material em comparação com o outro. Sublinhe-se que na entrada ocorre, com destaque a negrito “lenço de papel”, revelando a sua importância. Depois de usado, é indicado expressamente que é lixo (“que se deita fora após a utilização”), pressupondo-se que é usado apenas uma vez. A definição dá várias indicações sobre a diversidade de funções do lenço, mas identifica o formato “quadrangular”. Nesta definição, surge o singular “lenço de mão” (para mim, é plural) ou “lenço de assoar”.

O uso que sempre fiz e ouvi foi no plural: “lenço das mãos”. Recordo-me de a minha avó paterna me ter oferecido uns “lenços das mãos” com uns bonecos. Foram presentes para mim e os meus irmãos, quando éramos crianças. Os “lenços de namorados” bordados – uma tradição portuguesa e, provavelmente, de outros países – também funcionavam como presente. A oferta de um lenço era comum, há cerca de cinquenta anos. Esses da minha avó eram coloridos e bem bonitos. A minha mãe (quase a fazer noventa anos) ainda tem uma caixa cheia destes lenços, onde ficaram aqueles dos bonecos que conservaram as cores. Eram usados diariamente e lavados, a fim de serem reutilizados. Na família, cada um tinha os seus lenços e não se ia comprar lenços, por causa de uma gripe ou de uma constipação, como no exemplo da definição. Têm a durabilidade de uma vida, ou mais. Curioso, curioso, é chamar-se “lenço das mãos” ou “de mão” ao “lenço” que se destina ao nariz. Embora haja o registo de “lenço de assoar”, por que razão não ficou “lenço de nariz”? A definição explicita que servia para limpar o suor (a testa) e as lágrimas (os olhos e o rosto), mesmo se seria predominantemente para o nariz. Este dicionário confirmou a relação entre “assoar” e “lenço”, dando relevo ao “lenço de papel”.

A consulta poderia continuar com outras palavras. Por exemplo, na entrada “mão”, será que há alguma referência a “lenço” e “assoar”? Fico-me, no entanto, por estas duas entradas: “assoar” (ou “assoar-se”) e “lenço” porque remetem para vivências culturais e sociais que vão variando com o tempo ou com as tradições. A curiosidade linguística leva-me à consulta de um outro dicionário em papel, entre os vários que tenho em casa. De propósito, não vou à Internet, embora pudesse fazer a consulta, estando a um “clique” dela. Detenho-me, por agora, nas publicações em papel, abrindo-as para serem lidas como livros que são. Estas obras podem ter informações interessantíssimas e, por simples curiosidade linguística, vou comparar, brevemente, aquelas definições com as de um dicionário de ampla divulgação escolar o DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA da Porto Editora (veja-se a 8.ª edição), que tem vindo a ser substituído pelos formatos digitais. Assim, procuro, primeiro, “assoar”. Na entrada, está escrito:

 

  1. A) “limpar das mucosidades o nariz de” e B) “expirar com força pelo nariz para expelir as mucosidades; assoa-te a esse guardanapo! fizeste-a bonita!, que te sirva de lição! (De a-+soar)”.

 

Procurei, depois, a definição de “lenço”:

“pedaço de pano quadrado para uma pessoa se assoar, ou para agasalhar o pescoço ou a cabeça; nome popular do mesentério; [reg.] cabresto (Do lat. vulg. lenteu- do lat. cl. linteu-, «tecido de linho»)”.

A comparação entre as entradas poderia recair sobre a extensão das definições (mais longa e com mais exemplos a da Academia e bem mais reduzida a da Porto Editora) ou sobre a expressão idiomática (“assoa-te a esse guardanapo”) que surge em ambos os dicionários na entrada “assoar”. Poderia ser alargada a outros pormenores. Há convergências e divergências entre os dois dicionários. O que tem realmente interesse, neste momento, é o facto de se relacionarem as duas entradas em “lenço”: “assoar” (Academia: tem referência a “lenço”/ Porto Editora: entrada sem referência a “lenço”) e “lenço” (Academia: com referência a “assoar”/ Porto Editora: com referência a “assoar”). Para mim, ao pensar no ambiente e na sustentabilidade, o real interesse está no material (pano ou papel?) do “lenço” a usar para “assoar” alguém ou “se assoar, a si próprio”. Há muito que não vejo ninguém a assoar-se com a técnica dos dedos (portanto sem lenço), embora ainda veja boa gente a tirar macacos do nariz com os dedos… A obra da Academia das Ciências de Lisboa fez uma opção pelo “lenço de papel” próprio da época em que foi concebida a publicação.

Em síntese, com estas definições, conclui-se que “assoar” nem sempre implicará “lenço” (assoar-se com os dedos a comprimir o nariz é uma técnica que se foi perdendo) e que este verbo deixou de remeter para “soar” (fazer ruído) para significar “limpar o nariz” e, de preferência, em silêncio. Na entrada “lenço”, compreende-se que tem de haver um material identificado (linho, a nível etimológico: tecido/ pano ou papel), uma função (limpar o suor, as lágrimas, o nariz – assoar ou assoar-se/ cobrir a cabeça, o pescoço) e um formato preciso (quadrangular ou quadrado). Para o efeito, há quem prefira “lenços de papel”. Comparando com o francês, vê-se a diferença de vocabulário, já que, nessa língua, se faz a distinção entre “mouchoir” (é para o nariz, ou seja, para se assoar) e “foulard” serve para o pescoço. Os franceses foram substituindo “mouchoir” por uma marca de lenços de papel, isto é, “kleenex”, o que pode ter ajudado a conferir-lhe prestígio. Aliás, o descartável tende a ser considerado limpo e higiénico, se bem que um lenço (inicialmente de linho) lavado é tão limpo e higiénico quanto aquele. Estas duas opções são manifestamente culturais e sociais. O lenço – redundantemente de pano – poderá levar alguns anos a ser reintroduzido nos hábitos da população portuguesa. Poderá acontecer. Uma das minhas irmãs sempre o preferiu aos de papel. Eu estou, progressivamente, a voltar a ele, mesmo se ainda tenho de contrariar gestos mecanizados. Devo-o às actividades de Hélder Spínola na Universidade da Madeira. Falar na necessidade de proteger a Terra e não fazer nada é demagogia. Eu sei que as mudanças culturais e sociais são individuais. A minha profissão obriga-me a prestar atenção às palavras, assim como às acções. As palavras são fruto da vida. A língua, a sociedade e a cultura estão entrelaçadas.

O campo conceptual ou associativo da “sustentabilidade”, com palavras e expressões, é produtivo e está em franca expansão: “reciclagem”, “reutilizar”, “vidrão”, “papelão”, “pilhão”, “pegada ecológica”, “ecoponto”, “desperdício” (“evitar o desperdício alimentar”), “economia circular” e “planeta B (não há)” são exemplos que vão sendo introduzidos na linguagem quotidiana. Deste conjunto de elementos, e haveria mais a considerar, o corrector ortográfico identifica como erro apenas o vocábulo “pilhão”, que corresponde ao “contentor público para a recolha e a reciclagem de pilhas usadas”. Pensando um pouco sobre o tema, o próprio termo “sustentabilidade” (adjectivo “sustentável” + -idade) tem ar de ser bastante novo. Comprova-o a consulta dos dois dicionários anteriormente identificados. Não figura nem na 8.ª edição (1998) do DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA da Porto Editora, nem no DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA da Academia das Ciências de Lisboa de 2001 (1.ª edição). Isso poderá significar que o vocábulo é posterior a 2001 e que foi ganhando dimensão com o decorrer do século XXI. Nesta fase da minha curiosidade, não posso deixar de ir à Internet. Os dicionários digitais lucram com as pesquisas que todos fazemos. Vão adicionando os vocábulos pesquisados (que poderiam não ter na sua lista inicial, quando surgiram) aos que já têm, conseguindo, ao longo dos anos, um número de entradas consideravelmente maior, quando comparados com os publicados em papel. Estes, em livro, têm a (des)vantagem de estar marcados no tempo e no espaço. Permitem, por exemplo, trabalhos linguísticos comparativos de épocas ou de geografias distintas. Procurando “sustentabilidade” num motor de busca, são numerosas as páginas acerca da palavra que vem também associada a “ambiental” (“sustentabilidade ambiental”). O DICIONÁRIO ONLINE PRIBERAM DE PORTUGUÊS define assim a palavra:

“1. Qualidade ou condição do que é sustentável. 2. Modelo de sistema que tem condições para se manter ou conservar.”

A informação é muito reduzida e não comporta qualquer exemplo. Porém, com ela, atesta-se o seu registo em dicionário. Seria fundamental ter a indicação da data da 1.ª ocorrência. Isso não é referido por esse dicionário.

De qualquer maneira, creio que ninguém duvidará de que o conceito é relativamente novo. O paradigma de “usar e deitar fora” já passou de moda. Em época de crise como a que estamos a viver, com a guerra na Ucrânia, poderá ser posto em causa e vir a ser substituído pelo da “sustentabilidade ambiental”. Há mudanças em curso em diversos planos, nomeadamente no âmbito político: promoção de carros eléctricos, pagamento dos sacos de plástico, construção de ciclovias nas cidades, etc., etc. Quanto a mim, tudo se joga a nível individual. Eu passei a fazer a distinção entre “lenço para as mãos” e “lenço para o nariz”. Não quero andar com “macacos no nariz”! “Assoar-me a este guardanapo” é que não queria mesmo. “Ser mau [má] de assoar” também não é comigo. Ficam as deixas.

Março 2023