Nos últimos anos, a Sé do Funchal beneficiou de criteriosas e caras obras de conservação e restauro do acervo artístico, que conferiram maior dignidade a este Monumento Nacional, corrigindo danos provocados pela inclemência do tempo, adversidades climáticas, desastres naturais e também pela incúria na limpeza e preservação, ao longo dos séculos. São bons exemplos de intervenções cuidadas: retábulo do altar do Senhor Jesus (1996-1997), tecto da capela-mor (1997-1998), painel do Santo Franciscano, também conhecido por São Bento ou São Boaventura, actualmente no Museu de Arte Sacra do Funchal (2000), retábulo e cadeiral do altar-mor (2013-2014), tectos mudéjares (intervenção concluída em 2021) e o retábulo do altar de Santo António (2017-2022).
Contudo, também, nos últimos anos, têm sido introduzidos elementos dissonantes na nossa Catedral, como o órgão colocado na capela do transepto, que impede a leitura do retábulo seiscentista do Senhor Jesus (2017), os inestéticos confessionários anti-Covid (2021), a destoante escultura de Nossa Senhora de Coromoto (2021) e os anacrónicos relicários.

Como o actual vigário da Sé é natural da Venezuela, entende-se que tenha particular devoção por Nossa Senhora de Coromoto. Num oratório da sua residência, ninguém teria a ver com isso. Já colocar uma escultura da padroeira da Venezuela, sem qualquer valor artístico, no altar de São Miguel, da Sé, mesmo aos pés do Arcanjo do século XVII, parece-me absurdo e de mau gosto, embora perceba as suas intenções.
A Sé do Funchal possui diversas esculturas de Maria, com diferentes invocações. Não precisava de mais nenhuma. Maria é só uma, a mãe de Jesus, como bem sabe o pároco da Sé. Mesmo não recorrendo à Bíblia, basta cantar com Roberto Carlos: «Minha mãe Nossa Senhora somos todos filhos seus / Todas as Nossas Senhoras são a mesma mãe de Deus.»
Na Catedral, algumas esculturas têm mudado de lugar frequentemente, nos últimos tempos. Nossa Senhora de Lourdes deixou a sua capela em 2021, para dar lugar a São Tiago Menor. Ora do lado do Evangelho ora do da Epístola tem andado Nossa Senhora das Dores, agora exposta permanentemente no templo. As esculturas do Imaculado Coração de Maria e do Sagrado Coração de Jesus, que ladeavam o retábulo do Senhor Jesus, também têm deambulado pela Sé. Igualmente, mudou de posição a escultura de Santa Rita de Cássia, no altar do Senhor do Milagre.

No altar de São José, o pároco da Catedral retirou, do seu nicho, uma escultura do século XVIII, dedicada a Nossa Senhora do Rosário, para aí colocar relicários. No início de Novembro, o nicho abrigava as relíquias dos beatos Carlos da Áustria e Carlo Acutis. Mas em 18 desse mês já estavam ali as dos beatos José Gregorio Hernández e Carlo Acutis. A relíquia do imperador foi recentemente exposta na Capela de Santo António, com a respectiva fotografia, mais adequada a um salão ou gabinete dos sumptuosos palácios da Casa de Habsburgo do que a um altar franciscano.
Nada disto faz sentido na evangelização do século XXI. A veneração de fragmentos corpóreos de beatos e santos é um ritual do canibalismo espiritual. Foi para evitar que Israel seguisse o exemplo dos egípcios, que preservavam e veneravam corpos como relíquias, prática considerada idólatra, que Deus falou a Moisés sobre contactos impuros com cadáveres, «qualquer que seja o morto» (Nm 19,11-16).

A Sé é um Monumento Nacional aberto ao culto católico. Quando necessário, soube adaptar-se aos tempos e às mudanças litúrgicas, sem desvirtuar a sua História e a sua arquitectura. Introduzir elementos estranhos e dissonantes nos altares ou deslocar frequentemente esculturas religiosas não me parece forma correcta de honrar um monumento, onde ultimamente tanto investimento, público e privado, tem sido realizado no seu património artístico. Decorações Kitsch junto ao altar, onde se celebra a Eucaristia, privam-no do seu verdadeiro simbolismo cristão e não contribuem para a dignidade do lugar sagrado.

A Sé é a sede do bispado e Monumento Nacional. Deverá, por isso, merecer particular discrição e decoro. Nesta como em outras igrejas classificadas como Património Cultural, o acervo artístico deve ser respeitado e não envolvido ou encoberto por decorações festivas de gosto duvidoso.
Post scriptum: Antigamente recomendava-se véu ou chapéu, indumentária adequada, missal ou terço para a ida à missa. Tudo mudou! O profano e o popularucho estão a assaltar a Igreja, e esta cede alegremente em favor do aumento das assembleias. Talvez sempre tivesse havido essa tentação, mas, no passado, funcionavam, infelizmente, instrumentos de disciplina e mecanismos repressivos que impunham a normalização de vivências religiosas e do quotidiano.
Num anúncio publicado no Facebook, para duas Missas do Parto, da tradição madeirense, na paróquia de Nossa Senhora do Amparo de Benfica, em 16 e 22 de Dezembro, o padre aconselha «Tragam o vosso sino» e repete «Não se esqueçam de trazer um sino». Por certo, para o cântico popular «Virgem do Parto, ó Maria, Senhora da Conceição», efusivamente esganiçado no final da missa. Fiquei a pensar na insólita preocupação do padre: um sino! Badalar, badalar… sobre a alta cantoria! Pois então: um sino! Para exteriorizar a alegria! A interior, a verdadeira, não precisa do sino. A alegria da Fé dispensa o badalo. Pedia ainda que não se esquecessem de «trazer algo para partilhar e confraternizar depois da missa.» Licores, aguardente, broas… tudo pela frescura da manhã, em dia de trabalho, a reproduzir lá o que se faz por cá.
Lembrei-me então daquele bonito cântico «Senhor, quem entrará?», do Monsenhor Jonas Abib:
Senhor, quem entrará no santuário p’ra Te louvar? / Quem tem as mãos limpas e o coração puro, / Quem não é vaidoso e sabe amar.
Quão diferente é este apelo ao íntimo do crente daquele incrível pedido para os devotos das Missas do Parto levarem um sino, como se fosse requisito de ingresso.
No silêncio deste Natal, com a companhia de Metamorfose necessária: Reler São Paulo, de Tolentino Mendonça, retorno ao Apóstolo de Tarso: «Alegrai-vos sempre no Senhor! Repito: alegrai-vos! Que a vossa moderação se torne conhecida de todos os homens. O Senhor está próximo! Não vos inquieteis com nada; mas apresentai a Deus todas as vossas necessidades pela oração e pela súplica, em acção de graças. Então a paz de Deus, que excede toda a compreensão, guardará os vossos corações e pensamentos em Cristo Jesus.» (Fl 4,7)