O fio de retrós ou as vias sinuosas da Igreja Católica

No início do século XX, costumava-se dizer que a Igreja Romana ficaria como um fio de retrós, mas não haveria de rebentar. A divisão dos cristãos, maus comportamentos do clero, atitudes controversas da Santa Sé e o anticlericalismo poderiam explicar então o declínio da Igreja Católica.

Com a extinção dos seus mecanismos de repressão e a liberdade de imprensa, a Igreja Católica perdeu o manto imaculado que hipocritamente a cobria. Embora ainda procure impedir o acesso à investigação e ao escrutínio, através do usual encobrimento, muitas das suas práticas, nada condizentes com os princípios que defende, têm vindo a público, merecido generalizada reprovação e originado má reputação à instituição.

Nos nossos dias, o problema, com maiores repercussões na comunicação social, diz respeito aos crimes de membros do clero da Igreja Católica contra a liberdade ou a autodeterminação sexual de crianças, jovens e adultos. O Papa e os bispos revelam-se agora empenhados em combater esses comportamentos abjectos e repetem pedidos de perdão, sem cuidarem das vítimas, marcadas para toda a vida.

SÃO PEDRO. P. RUBENS. 1610-1612. MUSEU DO PRADO. MADRID.

Neste contexto, pouco se tem falado do voto de castidade e celibato, que os padres são obrigados a fazer, juntamente com os de pobreza e obediência. Talvez seja essa imposição de renúncia às relações sexuais a grande causa dos abusos praticados. Repugna ver a Igreja proteger padres pedófilos e ostracizar os que têm e reconhecem os seus filhos.

Nunca a castidade prometida foi integralmente cumprida, por todos ou em toda a vida de cada padre. Os exemplos abundam, no passado e no presente. Sabe-se, porém, mais dos tempos antigos do que da actualidade. Porque a Igreja impede o acesso aos seus arquivos, basta consultar a documentação da Chancelaria Régia, na Torre do Tombo, e ver centenas de padres a solicitarem, ao rei, a legitimação dos seus filhos.

Leia-se ‘O Crime do Padre Amaro’, de Eça de Queirós, romance publicado definitivamente em 1880, do qual saliento esta pertinente e actual reflexão: «Tudo se ilude e se evita, menos o amor! E se ele é fatal, por que impediram então que o padre o sinta, o realize com pureza e com dignidade? É melhor talvez que o vá procurar pelas vielas obscenas! — Porque a carne é fraca!» (Cap. IX)

Na verdade, não só os abusos sexuais da Igreja Romana têm comprometido a sua imagem nas últimas décadas. Há que lembrar também, entre outros, os escândalos financeiros (a falência do Banco Ambrosiano e o arcebispo Paul Marcinkus, protegido por João Paulo II; as actividades ilícitas do IOR – Istituto per le Opere di Religione, mais conhecido pelo Banco do Vaticano, designadamente lavagem de dinheiro, envolvimento com organizações criminosas e favorecimentos partidários, sob investigação das autoridades italianas). Bento XVI procurou reformar as finanças do Vaticano e combater os crimes, mas sentiu-se impotente, perante o poder dos monsenhores e cardeais. Francisco deu-lhe continuidade, afirmando em Julho de 2013 que era necessário «entrar nas pragas».

VENERAÇÃO DA POPULAÇÃO DO PAUL DO MAR À IMAGEM DE NOSSA SENHORA DE FÁTIMA NO SÍTIO DA MALOEIRA, FREGUESIA DA FAJÃ DA OVELHA, CONCELHO DA CALHETA. 9 ABRIL 1948. FOTO: ABM (PT/ABM/PER/A-D/002-001/000118).

Uma dessas pragas era o procedimento nada transparente da Congregação para a Causa dos Santos que, em 2013, referiu não possuir documentos sobre dezenas de milhões de euros movimentados para processos de beatificação e canonização. Tenha-se em conta que, no pontificado de João Paulo II, foram feitos 1338 beatos e 482 santos e cada processo custava, em média, meio milhão de euros. Era uma autêntica «fábrica de santos», com postuladores poderosos e caros, como Andrea Ambrosi, que tratou da polémica e demorada beatificação de Carlos da Áustria.

Abrindo um parêntese: Quando eu trabalhava na Direcção Regional dos Assuntos Culturais, visitava-me, com alguma frequência, uma freira idosa da Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias. Era uma mulher simpática e bondosa, que eu conhecia desde a altura em que fora professor no Colégio de Santa Teresinha. Andava com alguma dificuldade, mas não se queixava de percorrer o Funchal. Depois de me cumprimentar e breve conversa, pedia-me para comprar uma rifa de uma toalha ou colcha, sorteada em favor do processo da Irmã Wilson. Sempre comprei as rifas. Um dia, atrevi-me a perguntar por que razão as vendia. Então, na sua simplicidade e honestidade, esclareceu-me: «Para a Irmã Wilson ser beatificada é preciso mandar muito dinheiro para Roma.» Ouvi e calei-me. Passado algum tempo, encontrei uma outra religiosa da mesma Congregação, que já tivera posição hierárquica relevante, e, falando da causa da Irmã Wilson (por cuja acção tenho grande apreço), contei o que a irmã, que vendia rifas, me tinha explicado. Então a minha interlocutora disse com ar sério: «A Irmã não deveria falar essas coisas.» Percebi tudo.

Outros dois temas a merecer reflexão relacionam-se com a veneração a Maria e a relíquias de fragmentos de cadáveres.

Observo, com perplexidade, a propagação duma corrente popular, com apoio da organização eclesiástica, que, dissimuladamente, eleva Maria à categoria de divindade, a Rainha dos Céus. Vem já desde a Idade Média, mas, no século passado e neste, tem crescido, contribuindo para tal as «aparições» de Lourdes e Fátima, com a bênção dos últimos Papas, e, mais recentemente, Medjugorje, ainda sem a aprovação da Santa Sé.

A Irmã Lúcia, nas suas ‘Memórias’, referiu, pelo menos onze vezes, os «pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria». E o que é isto senão transformar Maria numa divindade? A Bíblia fala, em numerosos versículos, de ofensas ou pecados, mas contra Deus, pela transgressão da sua Lei. Cristo surge como o Redentor (1 Jo 1; Rm 6,1-6; 8,1-4). No Sermão da Montanha ficou tudo explicado (Mt 6,9-14)

Em 2000, falando sobre estes assuntos com um padre, professor de Teologia na Universidade Católica, ele aconselhou-me a ignorar, por completo, a história das «aparições» e dos videntes e que olhasse para Fátima como um centro de espiritualidade, com raiz mariana.

Para alguns historiadores, a veneração a Maria faz lembrar o culto à divindade sumero-acádica, Inanna / Ishtar, Rainha do Céu e da Terra, na Mesopotâmia (I. C. G. Almeida, 2015). Outros associam-na com Ísis, do Egipto Antigo, Rainha do Céu e mãe do deus Hórus (R. E. Witt, 1997). O profeta Jeremias afirmou que o Senhor reprovou o culto dos judeus à Rainha do Céu (Ishtar) e castigou os seus seguidores (Jr 7,18; 44,17-19.25-28).

Na Mesopotâmia, três mil anos antes de Cristo, rezava-se: «Que o meu deus se mantenha à minha direita! Que minha deusa permaneça à minha esquerda! Que meu anjo da guarda se mantenha a meu lado.» Mutatis mutandis, com esta assemelham-se orações recitadas na Igreja Católica.

Persiste, com efeito, um lastro religioso e cultural milenar, que atravessa diferentes regiões e épocas, desde a Antiguidade Oriental até à Cristandade.

Lembremo-nos, porém, como cristãos, das palavras de Paulo: «Para nós só há um Deus, o pai, / De quem tudo procede e para quem nós vamos, / E um só Senhor Jesus Cristo, / Através de quem todas as coisas existem e nós através dele.» (1 Cor 8,6). Explicando o primeiro mandamento a um escriba, Jesus começou por dizer: «Escuta Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor» (Mc 12,29)

A Mariolatria resulta do desconhecimento da Bíblia e do pouco empenho da Igreja Romana, desde há séculos, em incentivar a sua leitura e estudo junto dos católicos. Invocam mais a Tradição do que as Sagradas Escrituras. Querem a Bíblia só para o clero, que se arroga da sua verdadeira interpretação.

Em quase todas as igrejas, recita-se o terço antes da missa. Talvez fosse mais útil fortalecer a fé, dedicando esse tempo a ler e a explicar a Palavra de Deus, catequizar, em vez de repetir, de cor e sem pensar, orações e jaculatórias. Dá mais trabalho. Requer a disponibilidade de padres e leigos mais bem preparados. Contudo, é caminho para percorrer.

«Quando orardes, não tagareleis como os gentios, convencidos de que na verborreia deles serão escutados. Não vos assemelheis a eles. O vosso Pai sabe aquilo de que precisais antes de vós O instardes.» (Mt 6,7-8)

Por fim, falemos da veneração de relíquias de corpos de santos ou beatos. É culto abominável, repudiado já no século XVI, quando se tomou consciência de que as relíquias haviam trazido a decadência moral à Igreja de Roma. Resultam da profanação de um cadáver. Sem qualquer fundamento bíblico, só começaram a ser utilizadas no século II da nossa era, associadas ao culto dos mártires e ao receio dos bárbaros profanarem as sepulturas, desafiando as leis romanas que determinavam a intangibilidade das ossadas dos mortos e a inviolabilidade dos seus túmulos.

O culto cristão das relíquias é a continuidade de ritos pagãos em homenagem aos seus heróis. Compara-se à idolatria. Foi tema de grandes debates no século XVI. Até deu origem a guerras. No nosso tempo, pretender congregar fiéis e evangelizar com fragmentos de ossos, unhas, dentes, cabelos ou sangue é um processo anacrónico. Evangelizar com relíquias é recuar aos tempos do obscurantismo e do temor reverencial, quando as catedrais competiam na exposição do maior número e dos mais ricos relicários.

RELICÁRIOS. ALTAR DE SÃO JOSÉ, SÉ DO FUNCHAL. NESTE NICHO, ESTAVA ATÉ HÁ POUCO TEMPO A ESCULTURA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO, DO SÉCULO XVIII. FOTO: RUI MAROTE, NOV. 2022.

O conservadorismo saudosista anima-se com relíquias de santos e beatos, procissões e outras manifestações mais folclóricas do que espirituais. Fazem-me lembrar Maria Eduarda Runa, personagem do romance ‘Os Maias’, que não queria que o seu Pedrinho frequentasse um colégio católico inglês, pois «catolicismo sem romarias, sem fogueiras pelo São João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas – não lhe parecia religião.» Gostava, por isso, de Lisboa, com «as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões passando num rumor de pachorrenta penitência por tardes de sol e de poeira…» (Cap. I)

Como se dizia antigamente, a Igreja Católica está a tornar-se num fio de retrós. Ainda se segura pela fé do povo, mesmo que ingénua, e a eloquente obra social, mérito de muitos que trabalham abnegadamente pelo pão, saúde e ensino. Se não arrepiar caminho, actualizar-se, reformar a Cúria e os seus métodos, «entrar nas pragas», como disse o Papa, mas eliminá-las, e ouvir os cristãos, não só os do constante e resignado «amém», mas também os críticos, esse fio ficará cada vez mais frágil.

A casa está podre. A solução não é derrubá-la. Mas reerguê-la, começando, como deve ser, pelos alicerces. Impõe-se ouvir, de novo, o que Francisco de Assis afirmou ter escutado de Cristo nos finais de 1205, na igreja de São Damião, e que de início não compreendeu bem: «Vai, Francisco, e repara a minha casa que ameaça ruína!»