Estepilha: “Cada um na sua casa! Festas não interessam a ninguém!”

Rui Marote
Palavras certas. Mais que certas! Estepilha, era como uma escritura. Ouvi-as repetidamente durante as noites de vários Fins-de-Ano. E mais actuais do que nunca, nestes tempos pandémicos que pedem acima de tudo contenção, embora haja quem só queira “a economia a funcionar”. A viúva octogenária que as dizia já não está no mundo dos vivos. Morava na Estrada dos Marmeleiros, com uma panorâmica de 180 graus sobre o Funchal. Não tinha casas nem árvores à frente, somente o anfiteatro da baía com os navios de cruzeiro aos seus pés.
A anciã recebia contrariada na sua casa as suas filhas, genros e netos, para assistir à noite do Revéillon. A partir das 21h30 chegavam os convidados, munidos de um arsenal de bombas e de fogo de artifício.
O festival pirotécnico começava com antecedência e o terraço começava a ser o posto avançado das hostilidades, até o soar dos apitos dos barcos anunciar o novo ano.
Vasos de flores pelos ares, baldes virados, vidros partidos… Aconteciam todas as “diabruras” próprias de uma juventude que não sabia respeitar o orgulho que a avó tinha nas suas flores.
A idosa, enclausurada no seu quarto, de lenço na cabeça e chapéu, vivia um autêntico martírio, fechando os olhos mas não conseguindo ignorar os estampidos do arraial no exterior. Nem via o fogo, que para ela já tinha começado há duas horas atrás.
Era servida uma canja e sandes em pão de forma com galinha, bolo de família e o tradicional anis.
Nesta altura, a patriarca repetia o discurso anual:  “Cada um para as suas casas!!! Festas não dão interesse a ninguém”, sentenciava.
No exterior (terraço), um autêntico campo de batalha, pronto a continuar para o que restava do arsenal estrondoso durante o novo ano.
Recordo-a com saudade: era minha sogra e as suas palavras encaixam que nem uma luva nos tempos actuais. Longe estava ela de vir a pensar que o mundo estaria hoje a enfrentar uma séria pandemia, mas que mesmo assim o povo e os governantes queiram festa, ao contrário do que vai no continente, noutros países e até do que é recomendado pela Organização Mundial de Saúde.
O melhor remédio “É cada um em suas casas”. Mas há quem não entenda e quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga. Estepilha!