Uma atrás da outra

Não era manhã de nevoeiro. Ela tinha a certeza do que ouvira, ainda o sol não havia nascido. Daí para a frente, não conseguira dormir. Mal se apercebeu que o vizinho chegara do mercado, onde ia quase todos os dias bem cedo, assomou à porta e perguntou-lhe se tinha ouvido. Um lento e teatral meneio de cabeça deixou-a mais sossegada. Agora tinha a certeza de que não sonhara. O vizinho também sentira. Mais uma vez as tropas de D. Sebastião tinham passado à sua porta, ali próximo da Pontinha. Até a casa estremecera com o galope dos cavalos e a marcha apressada dos soldados, rumo ao mar.

Raramente a viam fora de casa. Só naqueles dias de animada conversa com o vizinho. Todos então ficavam a saber que a milícia de D. Sebastião tinha descido a ladeira. Ninguém mais tinha acordado com a tropeada. Como de costume, só aqueles dois viviam tão estranha realidade. Dela falavam com receio e esperança. Sempre com convicção.

A outra não ouvia o exército do malogrado rei, pelo amanhecer. Tinha um sono pesado, devido ao hipno-indutor habitualmente tomado ao deitar. Durante o dia, dizia e escrevia o que havia sonhado. O que tinha e o que não possuía. O que fazia e o que nunca realizara. O que concebia, pela calada da noitinha, e manhã dentro afirmava já há anos ter construído. Falava como inocente e vítima. Criava solenemente a sua fábula. Sem pudor, apresentava-a como narrativa autêntica. Não distinguia a verdade da mentira. Com um sorriso falso, despegado dos lábios quase cerrados, ia enganando e galgando. Pela popa, a escuma denunciava-lhe a rota da viagem predestinada à caverna de Equidna.

Uma acreditava no Encoberto, preso a uma Ilha de Bruma, da qual haveria de regressar com a ajuda dos seus fiéis seguidores. Mas nada sabia do Sebastianismo. Uma mulher quase analfabeta, conhecida por tirar sortes. Valia-se dos poderes que cria ter recebido. Era o seu ganha-pão. À sua casa afluíam pessoas simples, que a estimavam. Manifestavam sempre gratidão pela ajuda que diziam ter obtido. Levavam-lhe fruta, semilhas, batata-doce, hortaliças, flores em balaios cobertos com ramas. Em dias festivos, galos ou galinhas, vivos, para a canja e o assado no forno.

A outra era de estirpe diversa. Ambiciosa. Não dava ponto sem nó. Vivia na imensidão das suas mentiras. Mitómana. Diagnosticada, mas ainda sem data marcada para início de tratamento. Pelos seus princípios, não acreditava em D. Sebastião, mas se tal lhe proporcionasse alguma vantagem ou crédito, por certo, não hesitaria em fazê-lo.