Ao contrário do que se passou com muita boa gente, confesso que não fiquei particularmente surpreendido com a invasão do Capitólio por uma horda de fanáticos incentivados pelo derrotado Donald Trump.
Escrevo-o não porque estivesse escrito nas estrelas que a contestação aos resultados eleitorais de Novembro passado culminaria com o referido assalto, mas porque percebia-se que a escalada de actos e de declarações visando pôr em causa o acto eleitoral poderia não se limitar apenas ao recurso aos tribunais. Trump havia de resto já dado sinais disso mesmo quando pressionou o responsável do estado da Geórgia a lhe facultar um total de 11 mil votos que lhe permitisssem sair vencedor nesse colégio eleitoral. E, falhado esse objectivo, decidiu-se pela convocação de uma concentração dos seus apoiantes para Washington no preciso dia em que reunia no Capitólio o colégio eleitoral para certificar a vitória de Biden.
A propósito de toda esta encenação vale a pena recordar um texto de José Pacheco Pereira, publicado no jornal “Público” de 12 de Dezembro p.p., sugestivamente intitulado de “A tentativa de golpe de Estado de Donald Trump e do Partido Republicano”. Nele o antigo deputado e dirigente nacional do PSD recorda : “Trump tentou sabotar os correios colocando lá um servo que começou a desmantelar as máquinas de distribuição e a dificultar a chegada a tempo dos votos. Trump começou a dizer que todos os votos que não chegassem no dia das eleições deveriam ser deitados fora, esquecendo-se de que eles tinham sido enviados antes das eleições e eram particularmente legítimos. Depois, ele e Giuliani (o seu principal advogado) e uma série de personagens inomináveis vinham com nova teoria todos os dias: que as máquinas automáticas de contagem dos votos eram resultado da mão póstuma de Chávez (o antigo presidente da Venezuela, já falecido) e que os votos eram contados fora dos EUA; que havia malas de votos descartados (num vídeo falso) e testemunhos de que 5, 10, 20 votos tinham entrado erradamente, etc, etc. Alguns desses «testemunhos» eram tão ridículos que se tornaram virais pelo gozo”. Prosseguindo Pacheco Pereira escreve: “E depois fez aquilo que toda a vida fez como empreiteiro: litigar, litigar, litigar. Até aos dias de hoje, ganhou uma acção por coisas menores e perdeu 60, algumas julgadas por juízes por si nomeados. A última é um remake da Guerra da Secessão, colocando estados contra estados e praticamente suplicando ao Tribunal Constitucional para a aceitar, numa violação da teoria dos «state rights» de que até agora os republicanos eram firmes partidários. E depois continuar a radicalizar com insultos e ameaças a todos, mesmo republicanos, que não aceitavam que ele tinha «ganho as eleições e por muitos». A sua «base» traduziu e bem as suas palavras ameaçando de morte os recalcitrantes que têm que andar com protecção policial. Já houve mortos, vai haver mais. Trump quer uma guerra civil e faz tudo para a ter” (fim de citação).
E para quem possa considerar que se trata de uma leitura exagerada dos acontecimentos, Bernardo Pires de Lima, colunista do “Diário de Notícias”de Lisboa e especialista em questões internacionais, opina: ”Depois de quatro anos de incitação ao ódio, discurso inqualificável sobre adversários políticos, ataques diários à imprensa «inimiga do povo», marchas intimidatórias de milícias supremacistas a proliferarem pelos quatro cantos da América, e invasões armadas em Congressos estaduais, só se surpreende com o que aconteceu no Capitólio quem andou a brincar com o fogo, desvalorizando sistematicamente a palavra e a acção do presidente Trump” (o artigo tem o título “A insustentável impunidade dos facilitadores” e foi publicado no dia 9 deste mês no referido jornal diário).
Os mais optimistas ou para sermos mais precisos, os ingénuos argumentarão que perdida a reeleição, o vírus que representa Trump tenderá a desaparecer, a esfumar-se. Os sinais vão, porém, no sentido completamente oposto. Com efeito, 65% dos membros da Câmara dos Representantes eleitos pelo partido republicano validaram a tese do roubo eleitoral já depois da invasão ao Congresso, assim como perto de uma dezena de senadores.
Este facto e a circunstância de a câmara baixa (dos Representantes) ir na totalidade a eleições daqui a dois anos leva o já citado Bernardo Pires de Lima a concluir que “o cálculo dos republicanos continua a assentar nas teses e nos métodos trumpistas como eleitoralmente mais vantajosos”. Isto é, “uma massa alargada de legisladores está disposta a perpetuar as teses trumpistas para lá do mandato de Trump, ou seja, o enraizamento das teorias da conspiração, do discurso do ódio, do nacionalismo e da desvalorização de resultados eleitorais, se existia antes de Trump chegar à Casa Branca , vai sobreviver-lhe e apoiar-se no potencial eleitoral que lhe deu recentemente mais de 70 milhões de votos”. E se dúvidas houvesse sobre tais propósitos, o FBI acaba de alertar que grupos de extrema-direita planeiam atacar durante a tomada de posse de Joe Biden e Kamala Harris marcada para o próximo dia 20 do corrente mês.
Importa por isso não ter ilusões: o dano causado à democracia americana pela experiência do trumpismo vai perdurar, ao mesmo tempo que evidencia que o sistema dos EUA, apresentado por tantos como exemplar, também é frágil. Factores que irão dificultar o exercício da presidência de Biden.
Por outro lado, como assinalou em editorial o jornal francês “Le Monde”, “a tentativa de insurgência liderada pela Casa Branca, é uma lição para todas as democracias, especialmente as europeias” e uma demonstração insofismável de que “a ambiguidade e a aceitação do comportamento não democrático de líderes eleitos” é um terreno escorregadio e perigoso, que precisa de ser evitado.
No mais recente “Telegrama”, a newsletter editada pela edição portuguesa da revista “Courier International”, o seu director, o jornalista Rui Tavares Guedes, cita o prestigiado editorialista Boubacar Sanso Barry, do site Legely, oriundo da Guiné Conacri, que coloca também o dedo na ferida, nestes termos: “Por mais abomináveis que sejam as acções dos partidários de Donald Trump, eles lembram que não é apenas no Terceiro Mundo em geral e na África em particular , que a democracia ainda pode ser melhorada”. E acrescenta: “Se há lição que devemos tirar é que estes comportamentos não são privilégio dos chamados povos atrasados. Ficou óbvio, a partir de agora, que não é apenas em Conakry (Guiné), Abidjan (Costa do Marfim) ou Kigali (Ruanda) que as populações se deixam manipular por líderes políticos. Não é apenas em África que militantes, ignorando o bom senso e as leis da República, atacam as instituições. Devemos romper com todos esses comportamentos precipitados e um tanto racistas. Porque, finalmente, percebemos que em cada homem coexiste a humanidade e uma certa bestialidade. Seja ele preto ou branco, resida em Nova York ou em Nairobi(Quénia). E que, aliás, em nenhum lugar do mundo a democracia é uma obra acabada”.
Daniel Ziblatt, um dos autores do livro “How Democracies Die” ( em português “Como morrem as democracias”), em entrevista concedida em Março de 2018 ao jornal “Público”, afirmou: “Desde o fim da Guerra Fria, a principal forma como as democracias entram em declínio é através de eleições e não através de golpes de Estado. Pessoas que chegam ao poder com legitimidade democrática, porque foram eleitos, mas que, uma vez no poder, desfazem, desmantelam e atacam as instituições democráticas. Isto aconteceu na Venezuela, na Hungria, na Turquia, na Polónia…”.
Ora, nestes dois países europeus, a democracia tem vindo a ser posta em causa, através designadamente do enfraquecimento das instituições, como os tribunais e os órgãos de comunicação social, sem que até agora as instâncias europeias tenham actuado em conformidade, recorrendo aos procedimentos ao seu dispor . E a este propósito, é sintomático que, bem recentemente, o trumpista regional, que durante anos se reclamou de “único importante cá do burgo”, tenha vindo a terreiro em defesa desses mesmos países, num arrazoado inserto num jornal local. Nada que, afinal, possa surpreender, vindo de quem no exercício de funções procurou concretizar idênticos objectivos.
Malgrado todos estes nefastos exemplos, assistimos hoje no nosso país ao surgimento de um candidato presidencial que não tem o menor pejo em admitir a possibilidade de cortar as mãos a ladrões, que assume querer confinar uma etnia e que não hesita em falar de ditadura. Fá-lo confortado com a normalização que o PSD lhe proporcionou na sequência das últimas eleições regionais e que de resto já se mostrou disponível a estender ao plano nacional.
A quem assim procede, sugere-se a leitura do artigo, publicado na edição de 8 de Janeiro corrente do semanário “Expresso” da autoria de Luís Aguiar-Conraria, Professor de Economia da Universidade do Minho, sob o título “Um cesto de deploráveis”, no qual, a propósito dos debates televisivos entre os candidatos presidenciais, escreve: “Com o discurso de Ventura, não dá para fingir que não se percebe ao que vem. Esta semana, vimos nos EUA as consequências de deixar gente desta igualha chegar ao poder. Este é, ou devia ser, um sério aviso à navegação”. Como se recomenda o visionamento dos dois episódios já transmitidos da reportagem “A grande ilusão” da autoria do jornalista Pedro Coelho da SIC. Ou ainda, e também, a crónica “As pombas brancas vencem sempre” do fotojornalista Adriano Miranda, inserta na edição do dia 10 de Janeiro, no jornal “Público”, onde sem citar o nome do alvo (o candidato do Chega) se pode ler:” O pretendente a ditador está satisfeito. Julga-se brilhante. Como Portugal estaria melhor se ele tivesse nascido mais cedo (…) Hoje o país era outro se tivesse nascido no tempo da outra senhora. Com as nossas colónias, as nossas aldeias. Os nossos analfabetos para trabalhar. Os ricos para estudar. Sempre têm outra cabeça. (…) Não teríamos pretos na metrópole e os ciganos estariam na ordem. Numa reserva, talvez. Eleições só a fingir, como no seu partido (…) O pretendente a ditador anda agitado. Tem muito trabalho. Agora são os perfis falsos nas redes sociais (…) Depois existem as expulsões dos militantes. As lutas internas pelos tachos. Os financiamentos por debaixo da mesa (…) O pretendente a ditador por vezes tem vontade de desistir desta vida dura. Calejada. Oprimida. Mas não vira as costas ao sinal divino que recebeu. É um messias. Um enviado. Da Idade Média, talvez.
Era uma vez um pretendente a ditador. Era. Eram tão monstruosas as suas ideias que acabou os sus dias numa praça cheia de pombas brancas. Gritava frases soltas. Esfarrapado, sozinho e louco. Como todos os ditadores devem acabar. Venham eles de onde vierem”.
E não nos esqueçamos: sendo certo que a democracia é tanto melhor salvaguardada quando quem exerce o poder a procura preservar contribuindo com a sua acção para a resolução dos problemas e das necessidades das populações, em última instância, ela (a democracia) depende de nós e do que nós, cidadãos, fazemos com ela. É também isso que está em causa na eleição presidencial de 24 de Janeiro. Por isso não deixe de exercer o seu direito de voto. A pandemia não suspende a democracia. Participe. Vote.
*por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a anterior ortografia.
Post-Scriptum: 1) Gestão da Pandemia: É manifestamente perceptível que, salvo honrosas excepções, a gestão da pandemia tem revelado inúmeras falhas e insuficiências um pouco por todo o mundo. E está à vista de todos que, quer a nível nacional, quer a nível regional, a permissividade adoptada pelos Governos da República e da Região por ocasião do Natal e do Fim de Ano fez disparar os números de contágios e de mortes. E se é verdade que o combate ao vírus da Covid-19 depende do comportamento de cada um de nós, o exemplo tem de vir de cima. De quem recomenda distanciamento, se insurge contra ajuntamentos, e depois resolve juntar-se para saborear uma sandes de carne-de-vinha-de-alhos. Ou insistiu no espectáculo do fogo-de-artifício, não podendo deixar de saber que o mesmo iria provocar aglomerados de pessoas, fosse na baixa da cidade ou na casa de cada cidadão. Como há também trapalhadas dispensáveis como o anunciar da testagem a todo o universo escolar (alunos, professores e funcionários) e escassos dias depois deixar os primeiros à margem. Ou proceder à testagem de professores e funcionários, para imediatamente a seguir remeter um largo número para o ensino à distância. Ou seja, quem assim procede, não deve admirar-se que a seguir venha o descontrole….
2) Imitação: o trumpista mor regional anunciou que vai repetir o gesto que Cunhal recomendou aos militantes do PCP nas eleições presidenciais de 1984, quando a contragosto mandou que votassem em Mário Soares. A criatura, pelos vistos, também vai engolir o seu sapo. Continua amargurado por ninguém ligar patavina às suas lucubrações políticas e por ter ficado confinado ao território insular. É a vida!
3) Indecoroso: Em 2020, o dinheiro acumulado só por Jeff Bezos (patrão da Amazon) e Elon Musk (dono da Tesla e da Space X) foi oito vezes superior ao montante estimado para pôr fim a todas as situações de fome nos Estados Unidos da América, e é superior a todo o dinheiro alocado à administração central e aos estados, pelo Cares Act, para combate ao coronavírus naquele país. Uma realidade que se estende a muitos outros países e que constitui um espelho das desigualdades sociais verificadas por todo o mundo. É este o retrato de uma “economia que mata”, como o Papa Francisco classifica o capitalismo existente.