Carlos Valente responde a artigo de opinião de Irene Lucília Andrade

Carlos Valente, ao centro, numa foto de arquivo captada no Museu Henrique e Francisco Franco

Na sequência de um artigo de opinião publicado pela escritora Irene Lucília Andrade no passado dia 5 no Funchal Notícias, recebemos do videasta e professor Carlos Valente um esclarecimento, que passamos a reproduzir na íntegra: 

Em resposta ao artigo de opinião publicado neste jornal, a 5 de outubro do presente ano, intitulado “Virtudes e perigos das ficções – Quem foi Louro de Almeida”, venho tecer alguns comentários, com o objetivo, nada leviano, de repor a verdade (para usar as mesmas palavras com que começa o referido artigo) em relação ao “excerto” da minha dissertação de mestrado, datada de 1999, que foi alvo de crítica, parcamente rigorosa, na minha opinião.

A autora começa por dicotomizar: de um lado o ato ficcional, mais poético / literário, em contraponto com o ato investigativo, que se quer (ingenuamente, na minha opinião) exato e factual. Nada é preto-no-branco. Ora bem, a leitura de um texto é sempre uma interpretação, quer seja este mais “poético” ou mais alegadamente “científico”, ou, ainda, ilusoriamente objetivo. Já afirmava Umberto Eco, quando escreveu algures n“Os limites da Interpretação” que existe uma diferença entre usar um texto e interpretá-lo. Um texto pode ser infinitamente usado, de forma livre por quem quer que seja; mas a interpretação de um texto, essa, implica o respeito pelo seu sentido, pela sua sequência de ideias; no fundo, pela proposta que o autor avançou, na sua unidade e continuidade. Com isto pretendo dizer que é relativamente fácil, e leviano (devolvendo as palavras que me foram dirigidas), retirar um excerto (de um discurso de 150 páginas) para descontextualizá-lo e simplesmente usá-lo.

Posto isto, esclareço então, objetiva e rigorosamente, algumas das afirmações que autora profere. Em primeiro lugar, a autora retira do seu contexto uma frase onde menciono uma pintura mural, existente na cantina da então Escola Industrial e Comercial do Funchal, da autoria do pintor Louro de Almeida. Na minha frase, citada, apenas descrevo sucintamente o trabalho, (e não a vida do artista!) porque o meu texto, que antecede a citação e o que a sucede, é uma enumeração descritiva de vários artistas, com alguns apontamentos analíticos das obras realizadas na Região. Logo, quando digo que na pintura em causa é perpetuado um imaginário estético de teor salazarista, não entendo como tal pôde ter sido apelidado de “erro crasso”; afirmando a autora que eu estou a conotar o pintor com o regime, quando o que está em causa é a estética da obra. Nada no texto refere as opções politico-ideológicas do pintor, pois trata-se tão-só de uma constatação, nada leviana nem obcecada, de que, para todos os efeitos, a obra tem propriedades estéticas que remetem para um estilo bem caraterístico dos regimes totalitários de vocação “modernizante” (para usar um termo caro ao saudoso Rui Mário Gonçalves), como o foi o Estado Novo. Nada disto carece de rigor: qualquer análise estética, ou do foro da história da arte, em contexto nacional, faz-nos chegar lá, de um modo ou outro.

Mas o mais grave, na minha opinião, é que a autora, que pretende falar de Louro de Almeida, não cita outras passagens da minha dissertação, onde refiro o papel do Pintor no ensino superior artístico local, ou, mesmo na página seguinte, onde destaco um relevo em pedra executado para o Edifício da Caixa de Previdência, que possui um carácter mais moderno e experimental. Também é algo grave, na minha opinião, que se conclua que o autor (neste caso, eu) sofra da ingênua obsessão de considerar que tudo o que está antes de 74 é fascista. Esta afirmação demonstra claramente a ausência de uma leitura cuidada de todo o meu trabalho, onde inúmeras vezes destaco as ações artísticas, obras e artistas que, antes de 74, pretenderam “romper” com a estética consensual e oficial. A minha dissertação, a título de exemplo, até dedica várias páginas ao Comércio do Funchal, importante meio de comunicação local e mesmo nacional, inovador, reivindicativo e resistente.

Que existam imprecisões numa obra desta dimensão, é admissível. Sei que existem, o reconheço. Porém, e concretamente no exemplo citado no artigo, nada ali atenta contra a postura política e a luta antifascista que caracterizou a figura em causa, o pintor Arnaldo Louro de Almeida. O meu comentário apenas diz respeito a uma obra em concreto e não uma ficção, na qual está bem presente uma estética oficial, a que outros artistas também aderiram. As iniciativas artísticas, independentemente da sua origem e processo, e que se destinavam a espaços públicos, dificilmente podiam contornar a estética dominante. Mas esta limitação contextual não interfere, normalmente, nas convicções pessoais de cada artista. Ter sido Francisco Franco, por exemplo, o escultor-mor do Estado Novo não faz dele um fascista, nem do investigador que afirma que Franco o foi (escultor do regime), um leviano inventor de histórias. Após 74, e até hoje, os artistas são mais livres e pessoais, quando podem e querem, e serão, se o quiserem também, mais “comprometidos” quando a encomenda oficial, ainda hoje, assim o determina.

Para concluir, e a modo de crítica construtiva, creio que faltou uma referência introdutória, quanto muito, no artigo em causa, ao importante trabalho de compilação e organização que a minha dissertação representou, à época em que foi feita, facto reconhecido por muitos e importantes especialistas neste campo de estudos. Falhas e imprecisões todos temos, mas, para falar de leviandade, obsessão, tacanhez e falta de rigor, julgo que não escolheu o melhor excerto. Seria desejável, já agora, que este equívoco, viesse a suscitar interesse pelo pintor Louro de Almeida e promover trabalho aprofundado. O meu trabalho nunca o pretendeu, uma vez que o seu objetivo era recolher, sistematizar e dar a conhecer um século de factos e protagonistas (um vasto número…) das artes plásticas na Madeira.

 

Carlos Valente

Professor Associado da Universidade da Madeira