Cinco de Maio, 2020

          

                                                              …« O real instala-se, é tangível, tirânico: exige que seja contado. E para não

                                                                 sofrer o seu assédio, contamo-lo. É uma forma higiénica de libertação,

                                                                 de alívio». ( António Fournier )

 

Elisa fala português. Elisa habita um país martirizado, vive as mesmas angústias que todos vivemos, mas começou a experimentar mais cedo a ansiedade pela ameaça dum inimigo que veio chegando de leste, sub-repticiamente e invadiu tragicamente o mundo. No dia em que saiu de Portugal, deixou-me o endereço duma rua de Turim e outro  de Mondovì, onde residem os pais , um lugar aprazível, numa arejada colina do Piemonte.

Quando se menciona a língua portuguesa a propósito duma obra literária, dum nome consagrado ou duma efeméride relacionada com o meu país, acuso sempre uma espécie de sobressalto, como se  temesse uma invasão num território muito meu e muito amado. Assumo a soberba que este sentimento representa, por sentir-me livre no direito de ser quem sou, amante dum idioma com raízes bem fundas no tempo, uma língua que abarcou o mundo pela expansão da viagem, que aproximou terras e gente, que se engrandeceu pela poesia e pelo carácter dum povo, misto de sonhador e de pessoa de acção, uma língua rica em matéria vocabular, com um acento calmo e doce, de grandes potencialidades expressivas.

Lamento também que alguém possa de algum modo empobrecê-la, menosprezando a sua casta, certificada por uma história milenar, ou votando ao esquecimento certas terminologias, pelo desaparecimento de hábitos e práticas ancestrais.  Dizer-se engaço,  gadanho, forcado, ancinho é poder pensar na riqueza dum léxico que abrange todo um país, onde, em cada região o mesmo objecto se identifica através de diferentes vocábulos. Confesso a minha inexperiência em matéria linguística, mas não posso deixar de afirmar o carinho por este falar português que me permite ser quem sou, falar de mim e do mundo, do que sinto e do que penso, da alegria e do amor, do desejo e da ilusão, do obstáculo e do sofrimento, da mágoa e da beleza, da vida e da morte.

Mas que sei eu de Elisa, que  é  de um país estrangeiro ?

Neste momento Elisa e eu falamos dos mesmos obstáculos, dos mesmos sofrimentos, falamos de mágoa e de morte, possivelmente interessa-nos também falar de beleza e de vida. Temos um inimigo comum que nos aproxima e nos identifica no modo de sentir e no modo de pensar. Mas Elisa tem um privilégio, uma mais valia, que me ultrapassa, mas que me  favorece e alegra. Elisa fala português. Pode usar a minha língua para que se saiba da sua alma e dos seus sonhos. Vive em Itália, o país da sua origem, Itália agora de ruas desertas, de casas pasmadas, de jardins absortos num  estranho silêncio, de rostos ocultos, mas de olhos atentos e esperança contida, guardando o abraço para qualquer dia. Assim estamos todos de lá e da cá.

Lembro-me de Elisa. Miúda e gentil. Serena e delicada. Trazia uma pasta e um computador. Na esplanada do Jardim, à cautela, por não me conhecer, lentamente, preparou sobre a mesa os utensílios de trabalho. Um sumo de laranja apaziguou-nos do sol quente de Maio. Quis saber se o seu italiano dava certo com o meu português, cuidadosa e responsável , consciente das sinuosidades e artifícios duma língua.  Recolhi-me no meu recato e fui acompanhando tranquilamente as suas hesitações. Traduzir é percorrer os meandros do texto e seguir os caminhos do autor para chegar o mais próximo possível do seu pensamento. Elisa estava certa e eu sentia-me feliz. Confessou de seguida: Aqui, em Lisboa, sinto-me como a Angélica do seu romance «…naquela esquisita forma de felicidade que era a de sentir-me livre, só e desconhecida»

Dia a dia, à medida que ia concluindo o trabalho dava-me notícias  de Itália, da sua vida, e um dia escreveu em post- scriptum no email que me enviou: «A minha família tem lido e muito apreciado o primeiro capítulo do livro agora traduzido»…Conheci assim este conforto de ter alguns leitores num país diferente do meu, porque Elisa sabia português.  Mais tarde,no fim do seu Mestrado, recebi a tradução completa do livro e uma deliciosa carta com uma pequena flor prensada que me trouxe do Piemonte a memória  das suas planícies e belas colinas. Trouxe-me também  a simpatia e as palavras carinhosas de Elisa que escolheu a língua portuguesa para complemento do seu sonho futuro.

Quero esquecer este tempo atribulado que todos vivemos. Apesar de conturbado por uma guerra assimétrica,  declarada por um inimigo invisível e de origem incerta, espero que o mundo, à semelhança doutras épocas, continue vivo e desperto. Por Elisa e por outros como ela. Eles, os que amanhã terão de ser autores duma nova e desejada civilização, onde se acrescente à língua legítima da cada país, a língua universal do amor, da paz e da solidariedade.