As tribulações do tempo

 

Entre o nosso tempo e o tempo que é nosso existe uma extensão inominável que determina, por um lado, um fenómeno de memória e, por outro, uma circunstância de duração, que nos coloca perante o movimento real das coisas. Neste preciso tempo em que vivemos, de manhã à noite, a duração do dia parece-se com uma «eternidade». Pelos motivos que todos conhecemos, a vida mudou e não sabemos que fazer aos dias, a esta «eternidade» que, sendo uma das teorias do próprio tempo, se tornou adversa, causadora de sofrimento e medo.

Então, para preencher este hiato indesejado, falam-nos de livros, quando todas as habituais rotinas foram alteradas.  Recomendam-nos livros, como se eles fossem agora acabados de descobrir; como se, só agora, pudessem encontrar o seu lugar de conforto entre as mãos do povo inapto que não sabe como utilizar o tempo. Pena é que,  só por um motivo triste, se procure a alegria dos livros. Pena é que a alegria dos livros não tivesse chegado mais cedo e nos tornasse, prevenidos em vez de imprevidentes; decorosos em vez de libertinos; frugais em vez de vorazes; generosos em vez de desalmados; honrados em vez de corruptos.

Neste momento, porém,o movimento real das coisas anuncia uma mudança de direcção, para quando os dias felizes, que entretanto estão suspensos por um tempo, nos trouxerem de novo o sol da vida, o aconchego do abraço e o alívio da respiração em saudável liberdade. E já que os livros estão em causa, venho lembrar uma obra esquecida, ofuscada que tem sido pelo brilho estelar do pequeno «Principezinho»: A«Cidadela». Saint-Exupéry deixou-a incompleta por malefícios duma guerra implacável, mas a posteridade soube reconhecê-la como um testemunho essencial de humanização. Diferenciando-se das subtilezas do «Principezinho», na «Cidadela» o autor continua, embora dum modo mais pragmático, a crítica a uma natureza humana decaída, que terá que enfrentar construtivamente os seus próprios problemas, através dum espírito de reconversão e metamorfose.

Por isso, acho mais útil silenciar as minhas reflexões, por agora, para deixar pensar Saint- Exupéry:

Escrito 138: « Adiantei consideravelmente no conhecimento da felicidade e passei a considera-la como problema no dia em que soube ver nela o fruto da escolha de um cerimonial criador de uma alma feliz e não um presente estéril de objectos vãos. Porque não é possível proporcionar a felicidade aos homens como provisão… nos desertos mais agrestes e nas regiões mais rigorosamente nuas tenho visto homens de uma alegria transbordante.

Mas nem por sombras acredito que possas ir buscar a tua felicidade à solidão, ao vazio, à nudez, que aliás te podem levar ao desespero… Embora a experiência me tenha ensinado que se descobrem homens felizes em maior proporção nos desertos, nos mosteiros e no sacrifício, do que entre os sedentários dos oásis férteis ou das ilhas ditas afortunadas, nem por isso cometi a asneira de concluir que a qualidade do alimento (o autor refere-se às «provisões») se opusesse à natureza da felicidade, Acontece simplesmente que onde os bens são em maior número, oferecem-se aos homens mais possibilidade de se enganarem quanto à natureza das suas alegrias…. Para já pode acontecer que eles, na abastança, se enganem com maior facilidade e façam circular mais vezes riquezas vãs… Vem outra vez a propósito o inimigo, que, ou te mata, ou te dilata. Se tu reconhecesses qual a verdadeira fonte do teu fervor e conseguisses assim mantê-lo vivo na ilha afortunada ou no oásis, o homem que daí nascesse seria, sem dúvida, um homem maior».

Acontece estarmos quase todos, neste momento de retiro, nos nossas «ilhas afortunadas» que são as nossas casas, ao abrigo dum reduto familiar que nos preserva dum real inimigo, desconhecido e letal, invisível e imprevisível e precisamos de assegurar a felicidade de estarmos vivos, cultivando afectos, solidariedades e esperanças. Lá fora circulam aqueles que têm nas mãos o nosso amparo e a nossa sobrevivência. Eles que partilham as escassas «provisões» à medida necessária para salvar o mundo. Eles que vivem neste momento a experiência de se tornarem, cada um, «um homem maior», são nossos guias na descoberta do verdadeiro «fervor» que nos manterá a esperança e afastará do desespero.

Saint- Exupéry olhava do alto, o mundo, a minúscula «cidadela» em meio da desmesura do Universo e lamentava os seus males, fraquezas, desvarios. Temia pela sua destruição, pela proximidade do inimigo. Deixou-nos, contudo, um grito de alerta e de confiança que nos anima a todos nas tribulações. Mais do que nunca, para estarmos tranquilos, precisamos de perceber o seu sentido.