Jacinto Serrão: Emanuel Câmara “é um dos mais combativos militantes” do PS e do tempo dos socialistas que foram sujeitos a “ataques sabujos”

Fotos: Rui Marote

O FN continua com as entrevistas a cabeças-de-lista dos diferentes partidos às anteriores eleições regionais. Um modo de auscultar quem viveu uma realidade diferente, de uma “democracia musculada” e frequentemente desrespeitosa do adversário, e de como essas pessoas vêm a contemporaneidade e o futuro. Hoje cabe a vez a Jacinto Serrão, professor, licenciado em Física e que prosseguiu estudos posteriores em Ciências da Educação, área na qual é hoje doutorado. Um homem que viveu tempos politicamente difíceis, entre os quais relembra uma Assembleia Regional que “parecia uma marioneta manipulada pelo Governo”.

Funchal Notícias: Sucedeu a Mota Torres na liderança do PS-Madeira e escolheu seguir uma outra via, eventualmente mais combativa do jardinismo. Encabeçou as candidaturas do PS-Madeira em 2004, 2007 sozinho e, já em 2011, com Maximiano Martins. Recorde por favor esses tempos de afrontamento de um poder fortemente instituído na Região e do que procurou introduzir de inovador no discurso socialista na RAM.

Jacinto Serrão: Para mim, que sou um espírito livre e combativo, essa situação política deu-me ainda mais gana para lutar pelas causas, valores e princípios que sempre abracei. Sempre entendi a política como missão ao serviço do coletivo e não ao serviço de interesses pessoais ou de poucos. A política deve ser um exercício nobre de cidadania ativa em nome do bem comum. 

Por isso, a via de combate político foi a que as circunstâncias ditaram e foi adequada ao meio político cáustico, num tempo dos mais difíceis para se opor a um regime que adorava ter elites, organizações, públicas e privadas, e até dirigentes religiosos e políticos da oposição curvados a esse poder instituído. Além, dessa cultura política consentida, a Europa e os Governos de Guterres e de Sócrates, com o pagamento da dívida e a lei de meios, deram rios de dinheiro, sem fiscalização, que deslumbrou ainda mais o poder e a sua vontade de submeter ordeiramente todos aos seus mandos e desmandos. Conferiu-lhe um poder acrescido para pôr e dispor de tantos meios que davam para comprar tudo e mais alguma coisa, até alguns dos partidos da oposição não resistiram à vertigem do poder e, quais “cristãos novos”, ajoelharam-se ante o poder instalado. Ajoelharam-se e, para dar alguma autenticidade à conversão, atacaram e caluniaram vil e indignamente os partidos de onde desertaram. Dava pena ver isso.

Estávamos num tempo democraticamente imaturo, em todo o lado, incluindo nos órgãos de soberania que fechavam os olhos às violações ao Estado de Direito Democrático.

FN –  Eram tempos em que a democracia se vivia de outra maneira. Se há alguma coisa que se pode reconhecer a Miguel Albuquerque, é o facto de ter efectivamente introduzido o diálogo político civilizado no parlamento, algo que já devia ter sucedido há décadas. Mas nesses tempos Alberto João Jardim chamava o parlamento regional de “casa de loucos” e o governo poucas ou nenhumas contas prestava aos deputados. Como era fazer política nessa altura?

JS – Seria desonesto dizer que não há diferenças. A Assembleia era desprezada pelo Governo e tratada displicentemente. Nesse tempo a Assembleia, que é o 1º Órgão de Governo Próprio da Região, mais parecia uma marioneta manipulada pelo Governo, que é o 2º Órgão de Governo Próprio. Claro que muitos deputados, alguns da própria maioria musculada, tinham vergonha e consciência da situação política que se vivia.  A Assembleia não cumpria, objetivamente, a sua função constitucional, ante a complacência dos órgãos de soberania.  A Autonomia era instrumental e foi pervertida.   

O Governo, humilhava o parlamento e os seus deputados. Tratava de forma indigna o primeiro órgão da Autonomia. Os deputados da maioria não podiam pensar pela sua própria cabeça, salvo algumas exceções. Exceções que acabavam por sofrer também as consequências. As comissões eram apáticas e cumpriam calendário, dando os pareceres regimentais. O Governo não prestava esclarecimentos e não respondia às perguntas escritas dos deputados e nos plenários abandonava o hemiciclo sempre que os líderes da oposição falavam.  Era a prova provada da imaturidade democrática do regime. 

FN – Sente que a população da Região era pouco sensível ao ideário socialista, preferindo optar pela protecção que julgava sentir do “senhor governo”? Muitos temiam perder as pensões, que se soubesse de algum modo que estavam a votar na oposição… Eram tempos de discurso político quase único…

JS – A população não era insensível, antes pelo contrário. A população era vítima de campanhas de manipulação da informação e de pressões e perseguições, explícitas e implícitas. A comunicação social era hostil para todos os que ameaçassem o poder instituído. Os espaços de divulgação e de intervenção da oposição eram ardilosamente truncados por todos os poderes instituídos…

Para passar a mensagem e desmontar as calúnias e, como agora está na moda, as ‘fake news’, só tinha os recursos do PS. Eu só podia contar com os militantes. Foi aí que investi na formação política dos militantes, com ações de sensibilização. Mobilizámos o partido e todas as suas estruturas de base e fizemos inúmeras e incansáveis reuniões em todos os sítios da Região com a população.

Organizações, empresas, associações, igrejas e todos os patamares da administração pública estavam pressionados e minados, pelas razões acima referidas. Tinham de fazer o jogo do poder, sob pena das ameaças, perseguições e cortes nos apoios públicos. Era tudo feito assim, sem disfarces.

Contudo, os frutos do árduo e corajoso trabalho de muitos, os melhores resultados apareceram. Nas regionais 2004, o PS teve 37.751 votos esclarecidos e 19 deputados. Nas nacionais de 2005, 49.122 madeirenses votaram no PS-M, com 3 deputados à AR.

FN – Sentiu-se alguma vez perseguido e/ou achincalhado pelos seus adversários políticos ou pelo poder vigente?

JS – As pessoas e as famílias eram seguidas pelos olhares de serviço, o ‘big brother’ do regime. E a qualquer ação, que ameaçasse os privilegiados e o poder, havia uma reação pronta, mais ou menos ardilosa, com pressão e ações psicológicas dos doutrinadores de serviço.  Organizações, empresas, associações, igrejas e todos os patamares da administração pública estavam sob esse olhar ameaçador e eram pressionadas, pelas razões já referidas, a fazerem o jogo do poder, sob pena de sanções, ameaças, perseguições e cortes nos apoios financeiros públicos. Era tudo feito assim, sem disfarces e sem pudor.

As calúnias e as falsas notícias combinadas são sempre expedientes dos fracos e dos poderes com pés de barro. É lama que atiram ao ventilador para manchar a honra das pessoas. Mas, dos fracos não reza a história e não perco tempo com baixarias, seguindo o conselho de Winston Churchill, ‘You will never reach your destination, if you stop and throw stones at every dog that barks’

Em relação aos achincalhamentos e ridicularizações infantis, acho que ninguém passou ao lado da forma deselegante e sem educação com que alguns adversários faziam política. Eram ataques sabujos, que ninguém com dignidade ousaria fazer.

 FN – Acha que a população madeirense era ou é ainda imatura politicamente, em certos aspectos?

JS – Não, não é e nunca foi. Não há população politicamente imatura. O que há são governos, regimes e governantes imaturos democraticamente, como referi anteriormente. A Autonomia foi capturada para servir um poder sem maturidade democrática e sem respeito pelos valores da liberdade e de uma cidadania esclarecida.

FN – O exercício pleno da democracia tem uma oportunidade na RAM, ou, como dizem alguns, “estamos condenados a um fadário” de perspectiva única, de retracção ou receio patológicos, que não dão lugar à alternância?´

JS – Até nas ditaduras severas, as oportunidades existem, podem trazer muitos sacrifícios, mas existem. Na região mesmo sob o discurso de partido único existia sempre alguém para dizer basta. A história da autonomia da Madeira tem muita gente corajosa que, com sacrifícios, nunca se vergou, nem alienou os seus valores e princípios. Os projetos alternativos de governação, sob a minha liderança, sempre existiram. Eram sustentados e sustentáveis política, económica e socialmente. Eram elaborados na base de ideias de gente capaz e bem qualificada.

As necessidades de soluções políticas para os problemas financeiros, económicos, sociais e políticos encontravam resposta nos programas alternativos de governo que apresentei.  Mas, como referi acima, o caldo político era gerador de condições que impediam uma opinião pública esclarecida e uma cidadania ativa. 

 FN – Quando saiu para deixar a liderança nas mãos de Victor Freitas, sentiu que o testemunho ficava em boas mãos?

JS – A opção do PS com a candidatura à liderança do Governo, nesse ano, não correu nada bem, infelizmente. Saí da liderança por decisão própria e por entender que era a melhor solução para o PS. Não fiquei a empatar, nem a acautelar interesses que não os do bem comum.

Eu conheço o Victor Freitas antes de entrarmos na JS, onde ele e eu fomos também líderes, é um político da escola antiga. Ao sair da liderança do PS, criei todas as condições democráticas para todas as possíveis candidaturas, não condicionei candidaturas e deixei o PS totalmente livre, sem qualquer espécie de entraves. O Victor Freitas candidatou-se e ganhou legitimamente as eleições.  Os militantes escolheram livremente o seu líder. 

FN – Como vê actualmente a candidatura de Paulo Cafôfo pelo PS, com todas as peripécias que se verificaram (dizer que não abandonaria a CMF, finalmente fazê-lo, manter-se durante tanto tempo como independente antes de se assumir como do partido, etc.), e a presidência de Emanuel Câmara? Isto é “realpolitik” ou é trair de certo modo os ideais socialistas e a ideia de que o líder do PS é que se deve assumir como candidato à presidência do Governo Regional?

JSConheço o Emanuel Câmara, desde os tempos da JS, nunca desistiu de lutar pelos valores e princípios do PS e é, comprovadamente, um dos mais combativos militantes. O presidente Emanuel Câmara ganhou legitimamente as eleições no PS-M e deixou claro o projeto de liderança desde o início. Estou certo que Emanuel Câmara saberá acautelar a identidade e integridade do PS. Saberá honrar a história e a luta dos milhares que, em tempo muitos difíceis, deram o ‘corpo às balas’ para afirmar os valores e princípios do ideal do PS, onde a liberdade, fraternidade e dignidade de todos, todos sem exceção, devem estar garantidas na ação do PS.

A candidatura do Dr. Paulo Cafôfo, nas listas do PS-M, foi sufragada em congresso. Nessa altura, que eu me lembre, não havia a condição de se fazer militante ou deixar, ou não, a CMF. Se as coisas aconteceram assim há uma razão, certamente quem está a desenhar ou a gizar a estratégia da candidatura entendeu ser a melhor solução para a afirmação do projeto. Portanto, neste contexto, não há lugar para falar em traição.