No perfil da Ilha Lilás, chamada Terceira, recorta-se uma península imponente, parte dum vulcão que protege, a oeste, a baía de Angra e oferece uma vista privilegiada desta cidade açoriana. Em respeito a uma lenda celta que cita a chegada de irlandeses à ilha, baptizada então de Ilha Brasile, foi dado a este pedaço de terra altaneira o nome de Monte Brasil.
Este é um local que abriga uma magnífica reserva florestal de espécies arbóreas e arbustivas, por onde vagueia, em liberdade absoluta, uma família de veados. Domina o espaço o forte filipino de S. João Baptista, de longa e robusta muralha, a circundar o Parque Municipal do Relvão, que é, por sua vez, lugar de muitos lazeres, incluindo, a gozar da mesma liberdade dos cervídeos, um bando de galináceos. Dispersos por toda a encosta os galos dão largas à sua cantoria que se ouve pelas faldas da baía em despique festivo. O Monte Brasil é assim uma paisagem de recreio, onde apetece estar, respirar bons ares, usufruir de silêncios relaxantes e escutar os pássaros e as sonoridades deliciosas dos galos cantores.
A Ilha Terceira tem um carácter próprio que a identifica em relação às outras ilhas do Arquipélago. Aqui fala-se altiva e alegremente de Touros e de Carnaval. É a terra dos bravos. O Carnaval reflecte uma tradição de arte popular, onde o teatro, a música e o humor têm a sua máxima expressão, em numerosos espectáculos que animam os cinco dias do Entrudo e mobilizam grande parte da ilha durante um ano inteiro, numa preparação entusiástica e cuidada. Falar do Touro Bravo é entender que a preservação destes animais garante a protecção da paisagem e da sua biodiversidade num ecossistema particular. É salientar também ,embora seja assunto polémico, a bravura dos aficionados que mantêm um compromisso ancestral, desde o povoamento da ilha, no sec. XV, especialmente vocacionados para a arte taurina, da Corda e da corrida na praça.
Mas interessa-me sobretudo voltar aos galináceos que coabitam pacificamente nos prados com as vacas leiteiras. É de um mundo rural que se trata, e, embora a cidade cresça e se estenda em longas ruas e praças arejadas, os animais marcam a sua condição doméstica entre automóveis e transeuntes e, não raro, se descobre uma ave tranquila chafurdando na berma da estrada. Os próprios automóveis param para deixar passar as vacas que se dirigem para os pastos.
No Largo da Luz, contíguo ao Largo Conde da Praia da Vitoria, zona nobre desta cidade,onde se erguem vários edifícios de utilidade pública, um moderno Centro de saúde, um Ginásio, o Palácio da Justiça e, um pouco a Norte, a ampla Escola Secundária, um galo de raça amarela portuguesa, de cor intensa, cauda fortemente emplumada com penas negras de matiz verde e azul metálico, passeia-se por entra os bancos e as mesas da esplanada, debica por entre as pedras e na berma dos canteiros floridos, olha calmamente à volta, indiferente aos que passam. Estranho que ninguém se espante com tão insólita presença. Aproxima-se entretanto um varredor, pousa a lata do lixo, arruma o vasculho junto dum banco, retira da algibeira um naco de pão e espalha-o em migalhas que o galo vai apanhando num jeito que lhe parece habitual. Continuei a seguir durante algum tempo o deambular do animal, que ora virava a esquina do complexo clínico, ora reaparecia na direção do centro da praça, para de novo circular pela esplanada. A curiosidade levou-me a indagar sobre a situação. Fiquei então a saber:
O galo apareceu por ali ainda pinto, dois anos antes. A população adoptou-o e alimenta-o diariamente. O bicho adquiriu hábitos cívicos e é respeitador, não esgravata os canteiros, olha os dois lados da rua quando quer atravessar o Largo. Frequenta habitualmente o café e até já o viram a entrar num Banco. Foi-lhe dado um nome: Vitorino. Um nome significativo. Chamaram-no assim em homenagem ao terceirense ilustre Vitorino Nemésio que tem ali perto a sua casa natal e a Escola Secundária com a sua onomástica. Dizem-me sem ironia, mas com um sorriso complacente: O galo é património regional. Não incomoda. Ninguém lhe faz mal. E repetem: é património regional. É Vitorino.
Presença viva, o galo mantém a mobilidade de uma memória carinhosa que dignifica a ilha e distingue de modo particular a sensibilidade dos seus habitantes. Enquanto viver o Vitorino, os frequentadores do Largo da Luz falarão do Nemésio. …Que este facto singular possa servir de nobre exemplo aos que agora preparam o futuro na Escola Secundária do mesmo nome !