Leia na íntegra a homilia de D. Nuno Brás

ENTRADA SOLENE NA DIOCESE DO FUNCHAL
17 de fevereiro de 2019
VI Domingo do Tempo Comum (C)
Queridos irmãos

As leituras de hoje, próprias do VI Domingo do Tempo Comum, convidam-nos a retomar as realidades essenciais e primeiras do nosso ser cristão: são um verdadeiro programa pastoral! Havemos, por isso, de reassumi-las na nossa vida quotidiana. Com efeito, estas realidades essenciais hão-de ser como raízes sempre presentes, sem as quais a vida cristã seca, se torna estéril, se reduz a sal que se deixou corromper e que “não serve para mais nada senão para ser lançado fora e pisado pelos homens” (Mt 5,13).

Destaco duas delas: a pobreza e o testemunho de Cristo ressuscitado, que hão-de animar sempre a nossa vida e das nossas comunidades.
1. O trecho do evangelho de S. Lucas que escutámos apresentava-nos um retrato bem nítido de Jesus, com toda a radicalidade que sempre O caracterizou. Ao mesmo tempo, convidava-nos a seguir o Senhor, a fazer nossa esta Sua radicalidade, e a encontrar nesse seguimento a bem-aventurança, a vida feliz, já agora e para a eternidade.
Seguimos “o” pobre, Aquele que sempre viveu na radical dependência do Pai. Isso é, aliás, o que significa ser a Segunda Pessoa, e não querer ser a Primeira; ser o Verbo, e não querer ser a Mente (Rom 11,34); ser o Filho, e não querer ser o Pai: todas estas identificações de Jesus — Segunda Pessoa, Verbo, Filho, e o estilo de vida que caracterizava a comunidade de Jesus com os Seus discípulos — se podem resumir numa única atitude: pobreza.
Não se trata apenas de não ter onde reclinar a cabeça, como Jesus disse um dia de si mesmo (Mt 8,20). Trata-se de, em cada momento, querer depender do Pai, e de, nessa dependência — e apenas nela — encontrar a Bem-aventurança, a felicidade. Ou, com palavras do próprio Jesus: “o meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou” (Jo 4,34).
O nosso modo de viver contemporâneo é marcado pela riqueza. Mais do que ter dinheiro, queremos ser auto-suficientes, não depender de ninguém e ser os primeiros, o centro do mundo, procurando que tudo gire à nossa volta: à volta dos nossos interesses, dos nossos gostos, do nosso prazer. Pensamos que cada um deve poder decidir acerca de tudo e de todos. Que deve poder decidir acerca da vida, do seu início e do seu fim. Que deve poder decidir acerca da moral e dos seus valores. Que deve poder decidir acerca da Verdade.

É por isso que o mundo de hoje, talvez mais do nunca, precisa de cristãos que aceitem, como Jesus, viver na dependência do Pai. De cristãos para quem a auto-suficiência não seja o objectivo da sua vida. De homens e mulheres que reconheçam limites no agir humano: aqueles que decorrem do facto de sermos criaturas e não o Criador. Para quem a Verdade não se resuma àquilo que cada um acha que é verdadeiro, mas que vivam do Deus que é a Verdade. De cristãos que vivam e amem a pobreza.

Por isso, longe de nós colocar-nos no centro. Longe de nós pensarmos que somos a fonte da vida. Longe de nós procurarmos a riqueza como sentido último da existência.
Não tenhamos medo de depender de Deus. Sempre e em todas as circunstâncias.
Dependemos do amor de Deus! E esse amor nunca nos faltará, mesmo quando todos nos abandonarem.
A não ser assim, corremos o risco de, naquilo que fazemos e somos, nos mostrarmos a nós, à nossa sabedoria, àquilo que temos e até mesmo mostrarmos a nossa generosidade! Ao invés, queremos que seja Deus a brilhar, a aparecer em tudo o que fazemos e somos. Que seja a Sua Sabedoria a iluminar os caminhos nossos e de toda a humanidade. Que a realização da Sua vontade seja o alimento capaz de matar todas as fomes.

2. Aos cristãos de Corinto, que reduziam a ressurreição de Jesus a uma mera ideia espiritual, o Apóstolo (escutámos no passado Domingo) tinha já recordado o querigma, o primeiro anúncio que ele próprio lhes havia proclamado algum tempo antes, e sobre o qual a Igreja se edificava e florescia: “que Cristo morreu segundo as Escrituras, que foi sepultado e que ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras, e que apareceu primeiro a Pedro e depois aos Doze” (1Cor 15,4).

Ao contrário do que alguns membros da comunidade de Corinto opinavam, Paulo recordava que a ressurreição de Jesus não fora um sonho, um desejo, uma simples consolação espiritual. A ressurreição tinha sido antes um acontecimento histórico concreto, que envolveu todo o ser de Jesus — a sua própria carne. Foi “o” acontecimento que deu sentido às promessas do Antigo Testamento e à esperança de toda a história do universo. Ele próprio, Paulo, se ofereceu a si mesmo como garantia da realidade da ressurreição e do encontro com o Ressuscitado, acrescentando-se à lista daqueles a quem Jesus apareceu vivo: Pedro, os Doze, Tiago e mais de quinhentos irmãos.

Hoje, no texto que escutámos como IIª leitura, S. Paulo retirava as consequências da verdade da ressurreição: “Se pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos, porque dizem alguns no meio de vós que não há ressurreição dos mortos? Se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, ainda estais nos vossos pecados; e assim, os que morreram em Cristo pereceram também. Se é só para a vida presente que temos posta em Cristo a nossa esperança, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas não. Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram” (1Cor 15,12.16-20).

3 É nesta notícia, simples, de que Cristo foi o primeiro a ressuscitar, vencendo a morte, e de que nele também nós ressuscitamos, que se resume aquilo que os cristãos têm para dar ao mundo.

O cristianismo é Cristo ressuscitado. Tudo o resto decorre da nossa participação na Sua morte e ressurreição. Tudo o resto decorre de deixarmos que o Senhor viva em nós como fonte de vida eterna. Quando não, a fé fica reduzida a uma realidade humana, invenção, sonho, voluntarismo porventura generoso, mas incapaz de dar vida, de ser fonte de vida.

Hoje, aqui, nesta celebração, quero, convosco, proclamar bem alto a ressurreição do Senhor, a Sua vitória sobre a morte, que é a vitória da vida sobre a morte. Quero proclamar, como vosso bispo, a verdade da ressurreição.

Estou bem consciente de que a fé, a novidade do Evangelho, chegou a estas ilhas há muitos séculos. Há 600 anos. Veio com os primeiros que aqui habitaram. Impregnou desde o início a terra, as casas, o trabalho, a cultura, a esperança dos madeirenses. Deu origem a uma Igreja diocesana; a comunidades cristãs vivas, a famílias que transmitem a fé aos seus filhos.

Mas nós — cada um de nós e todos — necessitamos de regressar sempre, sem cessar, ao testemunho das realidades primeiras. Necessitamos de recordar ao nosso espírito, ao nosso coração, que somos discípulos de um vivo e não de um morto. E necessitamos também do testemunho uns dos outros e do testemunho da comunidade eclesial, do testemunho apostólico, que nos garante não caminharmos em vão.

Hoje, nós, cristãos da diocese do Funchal, queremos continuar a ser discípulos daquele que vive pelos séculos. Somos seus discípulos, e temos um caminho a percorrer, uns com os outros, no seu seguimento. Uma Igreja diocesana em que brilhe, cada vez mais, o rosto do Ressuscitado! O rosto
daquele que foi radicalmente pobre porque sempre dependeu do Pai, porque sempre procurou a vontade do Pai. O rosto daquele em quem resplandecia a vida de Deus, e que por isso venceu definitivamente a morte e abriu, para todos, os horizontes da vida eterna.

Uma Igreja diocesana que não se limite a aparecer mas que ouse ser, cada vez mais e sempre, testemunha, presença de Cristo no mundo, como nos convidava o Papa Francisco.

Que o Senhor ressuscitado nos ajude à radicalidade da fé. Que Ele nos ajude à verdadeira conversão. Que Ele nos ajude a encontrá-lo e a abrir-Lhe as portas, sobretudo daqueles que são os pobres, os que têm fome; os que choram; os que são perseguidos e rejeitados pelo simples facto de serem cristãos.

4 Que Ele nos faça, sempre e em toda a parte, Sua presença, para que também muitos O possam encontrar. Intercedam por nós Nossa Senhora do Monte, S. Tiago e o Beato Carlos de Áustria. Com o seu exemplo e ajuda, seremos capazes de abrir o nosso coração à graça de Deus, e de deixar que Ele construa em nós e connosco comunidades cristãs vivas, onde reine a caridade, e onde seja manifesto a todos o rosto e o amor de Cristo, vivo e ressuscitado.
+ Nuno, Bispo do Funchal”