Princípio de Karenina de Afonso Cruz – Uma equação contra o medo

Leonor Coelho, professora universitária na UMa.

*Docente na Universidade da Madeira e Investigadora no Centro de Estudos Comparatistas

Novela de formação e da memória, narrativa da descoberta da(s) identidade(s) e da alteridade, discurso contra a cultura de poderes instituídos, escrita inter e multidisciplinar, diálogo com o património literário de cartografias distintas, o livro Princípio de Karenina de Afonso Cruz (novembro de 2018) é uma leitura imperdível na contemporaneidade liquefeita dos nossos dias.

Publicada pela Companhia das Letras na coleção “Geografias Cochinchina”, a história desdobra-se em cinco “andamentos” divididos por cinco fotografias (inter)ligadas com a revelação da mensagem do livro. Estas modernidades literárias permitem, por um lado, reflectir sobre os “afasta-tudo” (2018: 58) e o lado ultramontano das identidades unicistas, revelando, por outro, o assombro da descoberta dos sentidos e o poder da claridade que derrube a escuridão. Assim sendo, trata-se de uma escrita de “transubstanciação” (2018: 13), que levará o narrador – criança e adulto  –  a insurgir-se contra a barbárie (a que começa em casa e transborda fora do lar) e, talvez sobretudo, conceber que “todos os anjos caídos serão levantados do chão” (2018: 183). De Platão a Saramago, dos escritores da Antiguidade aos da pós-modernidade, da linguagem cinematográfica às tonalidades picturais, da leitura do texto às leituras do paratexto, muitas seriam as possibilidades de interpretação deste livro de Afonso Cruz.

Todas concorrem para sublinhar a forma como o narrador/personagem se redescobre ao longo do processo de emancipação familiar e se reinventa afastado dos estereótipos culturais e identitários. O leitor vai descobrir o narrador-criança e o seu “exílio social” (2018: 15) num Portugal granítico e conservador, acompanhando, de igual modo, as desavenças afetivas na adolescência e a descoberta da plenitude na idade adulta.

Narrada na primeira pessoa, a história sublinha a forma como a figura paterna revela ao filho o pânico visceral face ao mundo desconhecido.  A escrita de Afonso Cruz marca a clausura provocada pela geografia afetiva e cultural do protagonista. Será, pois, necessário matar o pai, em sentido metafórico, para pôr cobro à inibição, ao medo e ao preconceito. Na realidade, o progenitor morreu pouco depois do início da narrativa. Todavia, a educação que transmitiu assente em “blocos de pedra” (2018:101) tem consequências durante largos anos. A mãe, por sua vez, representa a imagem do feminino afetivo e apaziguador. Contudo, guarda em si “um terreno estrangeiro” (2018: 60) que poucos conseguem verdadeiramente conhecer. Outras personagens saídas da galeria de Afonso Cruz juntam-se ao processo de emancipação da voz do texto: o Dr. Vala, o amigo Dois Metros e a mulher, a Fernanda da farmácia, são, efetivamente, personagens fundamentais na vida de um rapaz nascido com uma deficiência física, razão pela qual se sente “desajeitado, assimétrico e desequilibrado” (2018: 35). Poderíamos acrescentar as tias do Norte, três silhuetas religiosas com cheiro “enjoativamente doce de água-de-colónia misturada com sótão.” (2018:50)

Cabe sobretudo apontar a presença diferenciadora da mãe de Nhài. Ela encarna os dois lados do Oriente: o exótico e a desordem. Ela consubstancia o desconhecido, o bizarro e o insólito. Amante (im)perfeita para a voz do texto, ela contraria o estereótipo que liga a distância à ideia de selvajaria, como sustentado numa das epígrafes do livro. A título de exemplo, o leitor pode refletir sobre a observação de Heródoto, para quem “…os que vivem mais longe são os piores povos do mundo” (2018: 11). A amante oriental vem sobretudo desfazer barreiras, já que “a imponência do muro que nos rodeia é diretamente proporcional ao receio que sentimos.” (2018:38).

Quantos muros continuam a ser erguidos nos dias de hoje? Este livro reveste-se, pois, de uma atualidade preocupante. Esta narrativa mostra, sobretudo, que o perigo nem sempre vem do estrangeiro: o perigo costuma estar dentro do círculo que conhecemos. À luz da nossa contemporaneidade, a imediação ameaçadora do nosso quotidiano, quer pessoal e profissional, quer social e político, ganha renovadas interpretações. Dá que pensar!

Sou uma leitora da obra de Afonso Cruz. Lecionei, com Os Livros que devoraram o meu pai, questões ligadas à importância da leitura, do património literário e das práticas literácitas. Em contexto diferente, tive a oportunidade de refletir, com O Cultivo de Flores de Plástico, em torno da escrita dramatúrgica do escritor, sublinhando, por exemplo, questões de intervenção na res pública, problemáticas de cidadania, de inclusão e de mobilidades culturais e sociais.

Com Princípio de Karenina, o leitor pode acompanhar estas questões. O título estabelece um pacto de leitura com a literatura russa. Na verdade, as questões de intertextualidade são múltiplas. Veja-se, neste sentido, o valor das epígrafes selecionadas pelo escritor. A linguagem de Afonso Cruz, quer a narrativa, quer a fotográfica, aponta para a redescoberta das múltiplas dimensões que nos habitam. As fotografias selecionadas para este projeto editorial parecem então marcar o duplo que há em nós, os desassossegos, a tristeza, o tédio ou a desilusão. Note-se a explicação dada pelo autor na periferia do texto: “Este livro nasceu de uma viagem ao Vietname e ao Camboja, organizada pelo Centro Nacional de Cultura, cujo objetivo seria encontrar vestígios de nós próprios pelo mundo…” (2018: 191).  Comemora-se assim uma globalização dialogante. Trata-se, sem dúvida, de uma escrita da aceitação do Diverso e da Interculturalidade.

Voltemos a Princínpio de Karenina. No paratexto da narrativa, o leitor encontrará pontos de decifração que revelam a importância das múltiplas geografias que nos habitam, as identidades que nos enformam, os efeitos de estranhamento que ditam o medo e nos conduzem à disforia. Para reencontrar a ideia de partilha, poder-se-á destacar a segunda anotação do escritor: “A outra origem desta novela foi o texto que escrevi para o espetáculo Pasta e Basta, da autoria de Giamomo Scalisi com co-criação de Miguel Fragata, que mistura teatro e culinária, fazendo das receitas uma metáfora da própria criação…” (2018: 191).  Princípio de Karenina é uma metáfora do renascimento do ser. É, também, a metáfora da comunhão do princípio de um mundo que esbata fronteiras geográficas e morais. Trata-se, efetivamente, de uma narrativa que desvaloriza a deficiência física, aponta o enfezo moral, problematiza o desconhecimento da liquefação das identidades e aceita a hibridização dos sentidos.

As memórias que este narrador nos deixa são filtros do tempo (2018: 21). São, de igual modo, emoções que, por serem máquinas de impressão (2018: 24), transformam as lembranças. Trata-se, talvez sobretudo, de uma escrita que apaga muros intransponíveis ditados pelo homem contra o homem. Nos dias de hoje, a escrita de Afonso Cruz é de uma atualidade notória: múltiplas barreiras aprisionam-nos no mundo da incomunicabilidade. É necessário sair do obscurantismo transmitido e transmissível a futuras gerações. Em Princípio de Karenina, a voz do texto sairá da caverna da escuridão imposta pela figura paterna. Este livro é, por essa razão, uma escrita da comunicabilidade, da entrega e da redescoberta do ser-mundo. O ‘Princípio de Karenina’ corresponde à derradeira decisão do ser humano. A personagem de Tolstói optou pelo suicídio. A Anna do escritor russo preferiu desta forma combater o tédio, guardando para a eternidade o pleno de amor que encontrara.

Consciente da sua dualidade, “Um pé que é Epimeteu, outro que é Prometeu” (2018: 166), a voz do texto parece optar por sentido aparentemente contrário ao romance Anna Karenina. Ainda lhe restam réstias de sonho. O narrador/personagem regressa então ao Oriente. É nessa terra de lonjura que a comunicabilidade se fará dando a possibilidade ao leitor de acompanhar umas das mais belas provas de amor paterno.  Esta prova assenta numa hora e vinte minutos: é a medida da eternidade; é a medida da felicidade; é a medida do reconhecimento. Caros leitores procurem a justificação.  Nesta quadra festiva, conjuguem narrativa e descoberta, viagem e poética da alteridade. Esqueçam Crime(s) e Castigo(s), equações de medo e ‘barbarificações’ do mundo.

Princípio de Karenina é uma novela da composição (do Ser ao longo da vida) e, simultaneamente, da decomposição do estado anémico (do indivíduo que não consiga aceitar de forma natural a Diferença, o Estranho e a Mudança). São leituras de decifração que ensaiam formas de pôr termo à cegueira da nossa hodiernidade. Exilado na caminhada da vida, o homem poderá, a qualquer momento, reerguer-se, desfazendo o deserto que o habita e afastando a solidão que lhe inibe o discernimento. Este livro é, por um lado, uma escrita da afetividade e do rizoma identitário e, por outro, uma narrativa da insurreição e da rebeldia. Estão reunidos os “ingredientes” necessários para dessacralizar valores, usos e costumes que inibam o discernimento dos laços interculturais. Estão, sobretudo, mesclados os condimentos essenciais para se sacralizar a gramática do encontro, da descoberta multicultural e da modernidade global.