Um retrato desolador

Na mesmíssima semana (de 4 a 10 de Junho corrente), em que o parlamento regional, através dos partidos que, no plano nacional, e até há um passado bem recente, constituíam o designado “arco da governação” (PSD, PS e CDS/PP), homenagearam  a figura que não teve pejo em catalogar o principal órgão de governo próprio da Região como “casa de loucos”, a Pordata, um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), divulgou um conjunto de indicadores que, não constituindo propriamente novidade, revelam  um retrato da Região, a vários níveis, deveras confrangedor.

Um retrato que, ao fim e ao cabo, evidencia o outro lado da propalada “revolução tranquila” que o governante, entretanto homenageado, fazia questão de exaltar continuamente.

Um retrato que é também o seu legado. Um legado em que, em síntese, sobressaem indicadores como baixa escolaridade, elevado abandono escolar, reduzido poder de compra concelhio, uma taxa de desemprego de longa duração elevada e um igualmente baixo investimento na cultura.

O que equivale a que se diga que o panegírico do regime jardinista que o presidente da Assembleia Legislativa da Madeira produziu na aludida cerimónia está, sob o ponto de vista humano, longe de poder ser erigido como exemplo para quem quer que seja.

Com efeito, se há um consenso na consideração de que o progresso de uma sociedade está indissociável, intimamente ligado ao desenvolvimento do respectivo factor humano, os dados que a Pordata tornou públicos de forma agregada não são nada abonatórios, muito pelo contrário, para que se possa poder classificar a Região como das “mais desenvolvidas” do País e da Europa.

Na verdade, e por exemplo, sob o ponto de vista educativo, o grande salto, entre o passado pré-autonómico e o presente, verificou-se ao nível da edificação de edifícios, do crescimento do respectivo parque escolar, porque, quanto ao resto, ao nível das habilitações escolares os números não enganam e são, repito, desoladores.

E, por outro lado, já não colhe apontar como atenuante o baixo ponto de partida da Região. É que, que diabo!, decorreram já 40 anos após a institucionalização da autonomia, e as melhorias continuam a ser pouco significativas.

Ora, a situação torna-se ainda mais grave se atendermos a que este quadro reflecte-se, continua a reflectir-se, no acesso, por exemplo, ao mercado de trabalho. Ou seja, não é por acaso, que a Região detém a maior taxa de desemprego de longa duração do País – uma baixa escolaridade torna mais difícil a obtenção de emprego, de um novo emprego.

E, simultaneamente, essa baixa escolaridade tende a reflectir-se de igual modo na usufruição de salários mais baixos, como, de resto, sublinhou em declarações ao jornal “Público” do passado dia 8 de Junho, o sociólogo e professor na Universidade dos Açores, Fernando Diogo.

E a cadeia de consequências não acaba aqui. Traduz-se também na variável do poder de compra concelhio, em que só o Funchal dispõe de números superiores à média nacional, ao mesmo tempo que são vários os concelhos da Região que ocupam os últimos lugares da tabela nacional que envolve 308 municípios.

Vá lá que, desta feita, o governo regional não reagiu, como certamente teria ocorrido no passado recente, no tempo em que reinava a personagem que se auto-intitulava de “único importante” cá do burgo. Por isso, a Pordata não foi acusada de conspiração, nem de produzir uma “cabala” contra a Região, como é fácil de imaginar que teria sucedido nesse passado de triste memória.

Contudo, o secretário regional da Educação não resistiu a tentar desvalorizar os números da baixa escolaridade com a alusão à suposta não contabilização dos estudantes universitários que oriundos da Região se encontram a estudar no Continente e procurou minimizar a elevada taxa de abandono escolar com a alegada diminuição de, calcule-se!, 0,9 pontos percentuais, numa década, em relação à progressão do País. Enfim, às tantas, quereria que se cantasse vitória… .

Já agora vale a pena referir, sem qualquer pretensão de atenuar o igualmente preocupante quadro de indicadores açoreano, que não é adequado tecer considerações comparativas entre as duas regiões insulares portuguesas, na medida em que governar, gerir nove ilhas, bastante dispersas, não é o mesmo que fazê-lo em apenas duas. Isto é, as responsabilidades e as exigências de obtenção de resultados de modo mais rápido e eficaz, é, a meu ver, aqui maior do que lá.

A outro nível, o reduzido investimento na cultura é, deveria ser, motivo de séria preocupação. Uma marca a que não é certamente alheia a pérola discursiva, proferida em tempos pelo recém-homenageado, de que “o povo não come cultura”. No douto entendimento da criatura comeria betão. Daí o êxtase com que se aludia ao elevado consumo de cimento, a excitação com que o dito cujo e respectivos apaniguados propagandeavam dispôr a Região do maior túnel do País, etc, etc.

Ao fim e ao cabo, convinha-lhes, conveio-lhes  que o cimento, o betão tivessem sido erigidos em instrumentos determinantes da obra classificada como “notável”.

Mas, um povo que se queira “superior” não pode ostentar como troféus tão baixos indicadores humanos.

Uma nota final para dar ênfase a um indicador que pode, no fundo, constituir um sinal positivo. Refiro-me à perda de influência da Igreja Católica, pelo menos no que concerne ao casamento. Um reflexo, quiçá, do mais descarado concubinato que, ao longo destas mais de 4 décadas, vem marcando as relações entre o poder político e o poder religioso.

* Por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Post Scriptum: 1) A homenagem ao pai da dívida “oculta” deu para tudo. Para o próprio hipocritamente “agradecer” à oposição que sempre tratou mal e porcamente e reclamar, pela enésima vez, o pagamento daquelas contas do “Deve e Haver” a que o comité do Nobel continua a não prestar a mais do que merecida recompensa. E para se ouvir ou ler um pouco de tudo. Desde João Soares a classificá-lo como “figura marcante da democracia portuguesa” (faltou esclarecer se “made in” Reino Unido ou Hungria ou Polónia), a Miguel de Sousa que lhe atribuiu o estatuto de “melhor de todos nós” e de “o político que todos nós gostaríamos de ter sido”. Enfim, há gostos para tudo.

2) As escolhas do candidato do PS a presidente do governo regional para coordenadores dos denominados estados gerais tem, necessariamente, leitura política. Não deixam de ser sintomáticas as escolhas efectuadas para a área económica e para a saúde, designadamente de um quadro do grupo Sousa e de um médico que não labora no sector público. É caso para dizer: mostra-me com quem vens e dir-te-ei o que pretendes.