A caverna de Platão: algumas notas (ainda sobre um tema dito fracturante)

 

”O ser humano não se reduz ao que nós vemos ou acreditamos ver. Será sempre maior e mais profundo do que os nossos julgamentos estreitos. Nunca dirá a última palavra, sempre em mudança, em processo, capaz de transformar-se através das crises e das provações da vida” (Marie de Hennezel)

O exercício da actividade política deveria, por princípio, significar com elevado grau de preocupação o rigor e a ética inerentes (nesse caso) à responsabilidade, não só de representar toda a população de um país, como também a de pugnar pelo seu progresso e bem-estar. Idealmente, seria assim. Vem esta história a propósito do, ainda, debate (?) acerca de um tema que é designado como fracturante: a eutanásia.

Não sei se me interessará, neste preciso contexto, exprimir opinião (que se depreenderá, com certeza). Interessa-me, outrossim, filosofar. Quero filosofar, no sentido platónico da palavra, espantar-me, admirar-me diante do mundo e da sociedade que me rodeia e da qual faço parte. Procurando uma certa organização do pensamento – a minha sempre mais cartesiana – creio que seria fundamental, antes de todo e qualquer debate, que se conseguisse garantir as seguintes condições (refiro-me, muito especificamente, ao tema aqui referido):

  1. Rigor conceptual

Incluo, neste item, a clara definição de conceitos a utilizar para que, na política, como em tudo na vida, não se visse, mais do que o debate, uma intencional manipulação da opinião. Assim, seria expectável, entre outros, que se distinguisse eutanásia de suicídio medicamente assistido e que não se confundisse cuidados paliativos com distanásia. Convinha, ainda, que não se apresentasse uma morte, por eutanásia, como a única morte supostamente digna, por oposição a toda e qualquer morte natural como se esta fosse, dedutivamente e por oposição, indigna. A distinção entre sofrimento e dor física parece-me, igualmente, essencial para aclarar confusões frequentes.

  1. Informação

Que legislação existe, neste momento, em Portugal, sobre cuidados paliativos, desistência voluntária de tratamento medicamente recomendado/prescrito, ”guidelines” relativas à aplicação de tratamentos invasivos em doentes declarada e comprovadamente terminais, idosos que manifestem, por exemplo, outras comorbilidades? Qual a legislação, em Portugal, que define os limites de prolongamento artificial da vida (no SNS)? Nos outros países? A situação é igual ou diversa? Que leis se aplicam?

  1. Cientificidade

Rejeição, liminar e por princípio, do que hoje em dia se designa como “ciência do facebook”

Nas redes sociais e na blogosfera, em geral, proliferam os chamados “estudos” que não derivam de qualquer investigação ou que simplesmente não derivam de qualquer abordagem científica. Não estão validados por quaisquer entidades credenciadas para o efeito, apresentam-se tão credíveis quanto qualquer outra fonte de notícias falsas (“fake news”, em estrangeiro) e são citadas não só como fonte aceitável e/ou credível, como servem para “entalar”/manipular quem está, de forma honesta, a debater.

  1. Nobreza

Não raras vezes, e como tão bem sabemos, a ausência de argumentos, científicos, sobretudo mas não só, não previne o desencadear de uma planeada sequência de insultos que visam, em primeira e última análise, fragilizar e diminuir quem se pretende anular/manipular, enfim, calar. A nobreza de carácter (existirá, ainda?) é um excelente aditivo de respeito e de certeza de que o jogo não está viciado.

Ainda recentemente, num debate a que assisti, mas no qual não participei, foi com espanto (filosófico, ético, cultural, social e  académico) que ouvi, proferidos por um jovem estudante, variados insultos dirigidos a duas pessoas (jovens como ele) com quem seria suposto debater  o tema da eutanásia. Não conseguindo fazer valer a sua opinião, o jovem, defensor da eutanásia, agrediu verbalmente as suas colegas afirmando serem “retrógradas, julgarem que ainda estão na antiguidade, relembrando e acentuando que estamos no século XXI” e, também, ofendendo uma eventual opção religiosa por parte de uma delas. A sua sobranceria não-argumentativa evidenciou-se nas insistentes expressões de insulto e apoucamento das assim designadas adversárias na opinião.

Não consegui deixar de recordar (apesar de profundamente triste) os tempos do PREC, durante a minha juventude. Muitas vezes me foram dirigidos os mesmos insultos, sobre outros temas, é verdade, mas com a mesma postura ditatorial, de evidente intenção de manipular consciências, em suma, de visar, através do insulto e da fragilização, quer pessoal, quer alegadamente intelectual e, pretensamente política, afastar-me dos debates.

Salazar, na verdade, não morreu. Vive e exulta nestes “ditadorzecos” sem estampa, moldados e (eles também) manipulados pelos donos das verdades que repetem feitos papagaios ausentes de pensamento próprio. A única “coisa” que deixaria Salazar bem triste, olhando estes seus descendentes da nova era, seria a sua ausente cultura ( e isto é sim um insulto porque Salazar era um burgesso). Descansem em paz os indigentes da PIDE que já partiram e sosseguem os que fazem, ainda, vida boa em diversos partidos. Sosseguem pois. Os novos PIDES são menos sofisticados mas igualmente eficazes: policiam, impõem e calam. Definem, como se se lhes pertencesse, o que é Democracia, porque só eles sabem, só eles são capazes e também só eles têm autoridade para determinar.

Esta imensa e cada vez mais acentuada desonestidade intelectual, cultural e política alimenta-se de populismos e obscurantismos, instaura os seus Goulags e manda quem não interessa (leia-se repetir a mesma cartilha) lá para dentro. Serve-se da juventude de forma interesseira e, por conseguinte, abjecta.

Acrescente-se que, durante o referido debate, a palavra Ética nunca foi mencionada. Já não estranho. O  que estava ali em causa, não era a eutanásia, nem a morte supostamente “digna” ou “indigna” de ninguém. O que estava ali em causa, era o valor que cada um, individualmente, atribui a esse mistério maior: a vida. Mas dela quase nada se falou. Curiosamente. Voltei a Platão, nas minhas indagações e questionamentos, recordei a caverna, as ilusões e a epígrafe de Hennezel, uma fonte de inspiração e de boas leituras. De resto, a favor ou contra este ou qualquer outro tema dito fracturante exige-se das gerações formadoras (que não formatadoras) uma responsabilidade mais alta: facilitar aos jovens os utensílios necessários para que possam exprimir as suas opiniões, com fundamentação  e, sobretudo, com conhecimento. A não ser assim, antes não fosse.