O livro de Albuquerque

 

icon-ana-kauppila-opiniao-forum-fn“Poucas pessoas percebem a imensidão  do vazio em que a poeira do universo material flutua.”   HG Wells in A guerra dos mundo

A Escola Secundária Jaime Moniz celebrou, ontem, 13 de Janeiro, o seu dia, com a solenidade que uma instituição que no próximo ano lectivo festeja 180 anos supõe.

Presidiu às celebrações o Presidente do Governo Regional, Miguel Albuquerque, que legou à escola um exemplar de um conhecido livro de HG Wells, A guerra dos Mundos (The war of the worlds, no original) publicado num já longínquo 1898. Além da lembrança, Albuquerque centrou a sua intervenção na temática do livro e dele partiu para uma análise ao mundo tal como se apresenta, na actualidade.

Não se trata, aqui, de fazer uma recensão do mesmo pois proliferam, na rede, bastas análises da obra atendendo, até, à sua provecta idade.

Desconheço as razões pelas quais o Presidente do Governo escolheu este livro, em particular, e, em minha opinião, conhecê-las, retiraria o interesse especulativo que pode estar subjacente às mesmas… Assim…

Este livro foi, ao longo do tempo, adaptado para musicais, filmes e peças de teatro. É, desse ponto de vista, não só sobejamente conhecido, como trabalhado e exposto, de diferentes pontos de vista artísticos, ao público. Não deixa de ser interessante o facto de o mesmo ter sido escrito numa época de industrialização feroz, “profetizando” (palavra perigosa) um século em que a Grã-Bretanha seria devastada militarmente e que uma das mais conhecidas adaptações ao cinema, a de Steven Spielberg (2005), tivesse surgido no penoso rescaldo do “11 de Setembro”, em que a vulnerabilidade dos grandes Estados Unidos parecia feita de papel. No entanto, ao filme de Spielberg não bastou Tom Cruise. Faltou a dimensão de crítica social, política e geopolítica que subjaz ao livro de Wells e que terá sido a sua principal meta até porque o livro não tem uma leitura “simpática” do ponto de vista do que se considera ser uma obra de ficção científica.

O “fim da Humanidade” por uma suposta invasão alienígena, neste caso, marciana, é um tópico recorrente nas obras desta natureza. Wells relata uma tentativa de higienização do planeta Terra no sentido de o preparar para um novo povoamento/colonização, ou seja, desapropriar o planeta para o tornar, novamente, habitável. A guerra dos mundos foi, inicialmente, publicado em fascículos e recolhido, posteriormente, em livro. Em 1938, no advento da Segunda Grande Guerra, Orson Wells (que não era familiar do autor) provocou uma onda de pânico, no âmbito de uma emissão radiofónica da publicação de HG, levando os ouvintes a “rebentar” com a capacidade das linhas telefónicas no que terá sido, talvez, a primeira manifestação de massas relativamente a uma confusão entre realidade e ficção. Premonitório, também, nesse aspecto.

Porquê este livro e não outro? A imaginação de HG Wells, por mais fértil que pudesse ser e era, com certeza, não esconde uma das mais ácidas críticas ao imperialismo europeu, sobretudo em África, fazendo sentido político e antecipando, com inteligência, os resultados catastróficos que daí advieram para o que se designa, hoje, como “mundo ocidental”. Durante a sua alocução, Albuquerque relembrou a Guerra do Kosovo, em pleno século XX, a “limpeza étnica” que aí se verificou, recordou os frágeis equilíbrios sobre os quais assentam as actuais democracias e propôs, ao seu público, em especial aos estudantes a quem se dirigia, particularmente, que sustentassem as suas vidas pelos valores que edificam os regimes ocidentais: a democracia e a liberdade.

Em nosso entender, o Presidente também “fez literatura”. Com a obra de Wells, falou aos estudantes mas – e não sei se foi “ouvido” – terá falado ao seu partido, aos seus críticos e a todos quantos minando as organizações, mais do que exteriorizar discordâncias, contribuem, e muito, para as danificar por dentro. Silenciosamente, vindos da poeira… do “espaço”.

Interessantes: a escolha, o discurso e a reflexão. Afinal, e talvez, tudo ficção… científica (da minha parte, claro).