Portugal e o Atlântico, de Bernardo Pires de Lima

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Bernardo Pires de Lima, investigador e autor, tem assumido um papel público de relevo não só através dos livros mas, sobretudo, pela presença nos media onde produz comentário acerca de assuntos internacionais. Publicou, durante o corrente ano, um título Portugal e o Atlântico, na colecção “Ensaios”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

[O volátil devir do mundo atraiçoa, muito facilmente, a letra de opinião e de interpretação acerca dos assuntos a que se propõe o autor. A confirmada eleição de Trump, assim como a possibilidade do Brexit, que marcaram a recente agenda internacional, consubstanciam dados novos no “jogo” geoestratégico global e representarão, com certeza, importantes contributos no modo como os actuais “Blocos” e os países emergentes se posicionarão nos frágeis equilíbrios que os sustentam. Mais recente, ainda, o falecimento de Fidel de Castro que poderá, ou não, provocar mudanças em Cuba e, por extensão, no resto do mundo (leia-se, fundamentalmente, EUA) assim como a fundada dúvida quanto ao citado mandato de Trump. Em África, o Presidente Eduardo dos Santos anuncia a sua retirada do processo eleitoral mas relembra a exigência de disciplina face às escolhas por ele feitas para o futuro].

bernardopires-limaO ensaio é precedido por uma boa introdução e divide-se em três grandes capítulos: “O estrondoso renascimento da Grande Ásia”, “A ascensão silenciosa do Atlântico” e “Portugal e o hemisfério Atlântico”. As conclusões também consubstanciam uma bem elaborada síntese.

O autor começa a sua reflexão por referir o que designa como “grandes transições tectónicas nos últimos 500 anos” no sentido de fazer corresponder, a cada uma delas, um capítulo: a primeira, “a emergência do mundo ocidental” com a viagem de Vasco da Gama, a segunda, já no séc. XIX, com a “emergência dos EUA” e, finalmente, o post-queda do Muro de Berlim como advento de uma nova ordem mundial. O ensaio arrisca alguma criatividade no modo como explica o mundo mas não escapa a um certo alinhamento com os discursos considerados mainstream acerca da globalização, característica que costuma, aliás, emprestar, não raras vezes, aos seus espaços de comentário nos media.

Desenreda, em seguida, essas “transições” em diversas “colorações” e “pigmentações” com as quais descreve a ascensão e queda do mundo bipolar. O primeiro capítulo que, como referimos, é dedicado à Ásia é, muito provavelmente, o mais sustentado do ponto de vista da sua consistência, partindo do modelo de Mahbubani, um prolixo autor e docente universitário, em Singapura. É prudente registar algumas reservas a quem, no quadro das Ciências Sociais e Humanas, se propõe, como missão “despertar o mundo”. Esta generosidade messiânica suscita, em minha opinião, as citadas salvaguardas. Pires de Lima coloca em questão a durabilidade de um certo predomínio dos EUA, quer sobre o Pacífico, quer sobre o Atlântico, assim como o que designa como “menor conflitualidade do Atlântico”. É defensor do TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) mas tem sido crítico relativamente ao modo como foi negociado. Entende que é um processo acolhedor de desenvolvimento e de progresso e assume-o mais do ponto de vista político do que económico pois, para o autor, será uma espécie de último reduto/pilar do Ocidente: “se o TTIP é sobretudo um Tratado geopolítico (…) seria importante que incluísse duas áreas fundamentais na dinâmica atlântica, a defesa e a energia, ambas ausentes das negociações entre a EU e os EUA mas suficientemente marcantes para ditar regras e comportamentos à escala global” (p. 97). Numa recente entrevista ao jornal “I” foi amplamente difundida uma frase extraída da mesma em que afirma que um favor que a Europa faria ao mundo era o de despedir Claude Juncker. Deste ponto de vista, rompe com uma certa unanimidade à volta do actual Presidente e assume a crítica à gestão europeia. Aliás, ao distinguir “política económica” de “política externa”, Pires de Lima desmonta a engrenagem que sustenta o modo como Portugal cedeu protagonismo à recente crise argumentando que a deriva Atlântica teria construído uma suficiente zona de conforto, ao país, no sentido talvez não de a evitar, mas de suavizar as suas consequências. É, pois, numa linha crítica às relações de Portugal com a UE e com os EUA que situa a sua principal tese. Uma das questões que se coloca, neste momento, à proposta do autor é a que foi, anteriormente, referida: a vitória de Trump. Não se pode determinar, no quadro actual, qual será, exactamente, a influência dos EUA, no mundo, como se posicionará, como estabelecerá, ou não, relações com os seus tradicionais aliados e se o presidente eleito “cortará”, ou não, relações com a NATO. O ensaísta coloca como garante de sucesso de uma deriva atlântica, por parte de Portugal, a liderança dos EUA e a ausência de conflitualidade actual que caracteriza os países que bordam o citado oceano, por oposição ao Pacífico: “o século do Pacífico, a existir, nunca será isento de conflitualidade, o que expõe as virtudes do Atlântico (…) enquanto espaço de dinamismo interdisciplinar” (p. 46)

Regresso, propositadamente, a Lobo Antunes e a Adriano Moreira. Retorno ao seu humanismo renascentista que não se encontra neste texto de nova geração do pensamento sobre o futuro da Humanidade jogada em tabuleiros que parecem “ausentes” de pessoas. PL esgota o léxico da geopolítica, dos jogos de poder, da estratégia, das alianças e de toda a sua prolixa polissemia. Por vezes, e não é um seu exclusivo, quase acreditamos no deserto do mundo, embora reconheçamos que qualquer das propostas feita é em favor de um futuro melhor para os seus habitantes e que o seu discurso é, nesse sentido, também, profundamente moderno. Não há, por isso, paradoxo. Este neo-humanismo, diferente, por certo, dos autores citados, configurará um certo neo-pragmatismo que é, assim mesmo e naturalmente, ideológico.

Num outro texto que analisaremos, em breve, Pedro Calafate recorda Andrade Corvo, pensador português que publica, em 1870, um livro chamado Perigos. Nessa obra, Corvo faz, avant la lettre, estudos de futuro, prevendo o da Europa e concedendo-lhe uma dimensão trágica. Refere a decadência ética e moral dos governantes, acentua o egoísmo das beligerâncias e, no quadro destas, chama a atenção para o papel que um pequeno grande país como Portugal poderia desempenhar no desenho de uma Europa melhor. Retomo o ensaio de PL: “Lisboa tem de ser capaz de, em concertação com os demais parceiros, liderar um debate nas instituições, mas sobretudo junto dos cidadãos” (p. 83).

Neste seu ensaio, Bernardo Pires de Lima recorda o trágico retorno do medo como condição existencial de uma Europa que cede às pulsões nacionalistas e soberanistas que minam, em primeiro lugar, as democracias mais estáveis e progressistas, até ao presente (o caso das democracias do Norte da Europa) e, em segundo lugar, o futuro do velho continente enquanto União: “não é por acaso que Vladimir Putin e os extremistas que inspira na Europa, de Marine le Pen a Viktor Urbán, são so maiores detractores do TTIP” (p. 98).

Cumpriram-se, este ano, a três de Dezembro, os 100 anos do ataque alemão à Madeira, durante a Primeira Grande Guerra.

É saudável, no quadro de uma reflexão desta natureza, repensar a História, embora esta não se repita, sublinhando certos invariantes que provocam destruição e dor de forma gratuita e desnecessária. A historiadora Margaret MacMillan referiu, como causas  próximas da Grande Guerra, entre outras, uma coincidência, nos países-chave, de “lideranças medíocres”.

“Food for thought” este texto de Pires de Lima.